Azul

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O jovem Stuart Pot despertou com dificuldade depois de muitos dias, mas o mundo a sua volta continuava meio escuro. Levou uma das mãos ao rosto, para algo que lhe impedia de enxergar claramente. Tocou, com a ponta dos dedos, algo macio e úmido que envolvia sua cabeça e logo percebeu se tratar de bandagens recém-colocadas. Procurou pelos lados algo que lhe desse alguma pista do que havia acontecido, mas nada pareceu ser familiar.

Estava só em um quarto claro, de paredes brancas e janelas duplas. Sua cabeça girava enquanto parecia pesar mais do que realmente deveria. Olhando mais atentamente, percebeu uma das pernas suspensa e engessada. A visão o tornou atônito, e remexeu-se na cama para ver mais de perto. Instantaneamente sentiu uma dor aguda perfurá-lo nas costas e, com dificuldade, retornou à posição inicial quase sem conseguir respirar.

Não se lembrava com certeza o que havia acontecido, mas, breves relances continuavam a voltar a sua mente. Um dia ensolarado; algumas prateleiras de conservas; uma parede de tijolos desmoronando e uma risada maléfica percorrendo todos os seus ossos. Nada mais do que isso podia ser recordado.

- Oh! Finalmente acordou, meu rapaz!

De repente, um homem de rosto gordo e cor-de-rosa apareceu à porta, vestia um jaleco azul-verde longo com um crachá pendendo preso à borda, onde se lia: Dr. H. Wright. Sem muitos rodeios, ele rodeou Stuart com diversas perguntas sobre como se sentia, o que se lembrava e, principalmente, informando-lhe com precisão os acontecimentos passados.

Era uma tarde quente e monótona quando o azulado estava, como de costume, ajudando seu velho pai a repor mercadorias recém-chegadas no mercadinho da família. Uma grande prateleira de alimentos em conserva erguia-se a sua frente e, com sua paciência de sempre, Stuart etiquetava cada pote com uma delicadeza quase desnecessária. Havia alguns poucos clientes perdidos em seus pensamentos enquanto remexiam em pacotes, e o velho senhor Pot contava novamente as notas do caixa.

Foram os profundos olhos azuis de Stuart que avistaram primeiro, pela janela, o Vauxhall Astra negro se aproximar perigosamente do imóvel. Antes que pudesse gritar ou fugir do lugar em que estava, os mesmos olhos viram a grossa parede de tijolos ruir, levando consigo as prateleiras cheinhas e um adolescente assustado e inocente.

Stuart estava com 19 anos completos quando conheceu seu algoz, Murdoc Niccals, responsável pelo acidente e por levar um de seus olhos azuis como o oceano. Como punição pela tentativa de roubo ao mercado e pelos danos causados ao garoto, Niccals foi sentenciado a três anos e meio de serviços comunitários, onde deveria dedicar também 10h semanais à reabilitação de Stuart.

Apesar de todas as diferenças, Stuart e Murdoc rapidamente formaram um estranho tipo de vínculo onde, durante o tempo que passavam juntos, conseguiam até mesmo se divertir. A inocência do jovem Pot o impedia de perceber a maldosa malícia de Niccals, que buscava um bom comportamento para diminuir sua carga de horas.

- Quem é a garota que sempre te procura no mercado? – Murdoc perguntou um dia, enquanto soltava mais uma baforada pelo vidro aberto do carro.

- Ah... A Paula? É uma, uma conhecida. – Stuart empertigou-se para responder, remexendo-se desconfortável no banco do passageiro.

- Ora, vamos... – o esverdeado insistiu, apoiando um dos braços no volante do carro, de modo a ficar de frente para o outro. - O que você tem com ela?

- Eu... Eu ainda não sei direito. – o garoto mal podia olhar nos olhos de Murdoc, mesmo o hifema tendo enegrecido por completo uma de suas íris, ainda podia enxergar com certa exatidão. – Mas eu gosto muito dela, e acho que não vai demorar muito até que ela seja minha namorada.

Stuart respondeu afinal, corando e brincando com os dedos a frente do corpo. Um sorriso bobo e ingênuo atravessou seus lábios enquanto idealizava seus doces pensamentos. No banco ao lado, Murdoc o observava em silêncio, seu rosto se contorcia em uma espécie de desprezo ou repugnância.

Cerca de um ano depois, a mesma cena repetiu-se, no mesmo carro, com as mesmas pessoas. Desta vez, porém, a resposta dada por Stuart fora diferente.

- Niccals, agora é de verdade. Nós realmente estamos juntos! – o sorriso amarelado de Stuart encheu-lhe o rosto, iluminando os olhos bicolores.

- Ah é? Eh, estava mesmo na hora... – Murdoc respondeu entredentes, segurando com força o volante do carro.

A dupla estava estacionada em uma rua movimentada qualquer em Nottingham. Murdoc havia parado para comprar algumas cervejas em uma taberna, mesmo sabendo que seu jovem pupilo não suportava uma única gota de álcool. Olhando a sua frente, o esverdeado notou um grupo relativamente interessante de mulheres, as quais observavam fixamente o estranho e misterioso homem de pele verde e cabelos negros como as trevas.

Instintivamente, com os pensamentos mais sujos que podem habitar a mente humana, Murdoc acelerou seu potente motor e arrancou com força, para a surpresa de Stuart, que só teve tempo de agarrar-se ao assento enquanto olhava incrédulo do homem ao seu lado para as moças à sua frente. Com extrema habilidade, ele as contornou em um círculo completo, indo até a outra ponta da rua.

Em seguida, retornou com uma nova arrancada, deliciando-se com as risadinhas fúteis que ecoavam na noite escura. Desta vez, porém, não foi capaz de completar seu feito, atrapalhando-se com os pedais. Murdoc freou depressa ao perceber que iria bater em um muro de pedras, fazendo com que o carro deslizasse pelo asfalto úmido e arremessasse seu passageiro.

Praguejando aos céus por ter envolvido Stuart em um novo acidente que, provavelmente resultaria em mais horas de trabalho comunitário, Murdoc saltou do carro com dificuldade enquanto um filete de sangue lhe corria pelo rosto. O pobre garoto azulado havia sido jogado contra a calçada, de bruços.

Ao observar a pequena poça de sangue que escorria do corpo quase imóvel de Stuart, Murdoc teve a certeza de que, desta vez, não seriam apenas algumas horas de trabalhos comunitários que o iriam safar da prisão. Com extrema tensão, inclinou-se para o outro, cutucando-o nos ombros.

- Pot? – chamou, com uma voz irreconhecivelmente trêmula.

Lentamente, a respiração de Stuart tornou-se mais rápida, à medida que movia seu corpo para levantar-se. Murdoc ajudou-o a se sentar no meio-fio, observando seu rosto ralado e completamente ensanguentado, abismado com o que via. Ainda atordoado, o garoto olhava para os lados, tentando entender o que havia lhe acontecido. Ao seu lado, cerca de quatro ou cinco dentes jaziam no chão, enquanto gotas de sangue brotavam em seus lábios.

Murdoc o olhava maravilhado e, o que mais lhe chamava atenção eram os olhos do garoto, agora ambos completamente tomados pelo hifema. A imprudência do esverdeado havia tirado para sempre o azul de Stuart, mas, para Murdoc, não havia dúvidas, ali estava o que ele sempre havia procurado e idealizado em seus mais profundos devaneios: um deus de cabelos azuis e olhos negros.

Gorillaz: Make Me Feel GoodOnde histórias criam vida. Descubra agora