Solidão

146 14 14
                                    

Foi a dor da primeira pedrada que o fez despertar. Ainda sem abrir os olhos, ouviu crianças gritando e rindo à sua volta. Este som, mesmo que sem querer, confortou um pouco seu coração deprimido. Levou a mão até a cabeça que latejava incansavelmente. Só então percebeu que eram aqueles pequenos a causa da sua dor.

A segunda pedrada o fez abrir os olhos, arregalando-os. Olhou a sua volta e os viu. Quatro meninos esfarrapados e sujos atirando-lhe pedras. 2-D tentou defender-se com os antebraços.

- Ele está morto! Olha os olhos deles! É um zumbi!

- É um monstro! É um monstro! Saia daqui!

Os meninos gritavam sem parar, jogando, além das pedras, calúnias e mal dizeres. Sem conseguir dizer nada ou tentar qualquer coisa, 2-D tentou levantar-se e fugir, mas a ressaca da noite anterior lhe fazia o mundo todo girar. Tropeçando nos próprios pés, conseguiu aos poucos se afastar, mas não sem levar algumas boas pedradas. As crianças não o seguiram, mas entoavam em alto e bom tom: "Vá embora seu feioso!".

Somente 2-D sabia como as crianças podiam ser cruéis. Aquela não era a primeira vez que ele havia sido atacado por elas. E isso aumentava ainda mais seu sentimento de inutilidade.

- Nem mesmo as crianças de rua me aceitam...

O inverno estava chegando ao condado de Essex e o clima pela manhã já era gélido e de muito vento. O azulado enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta de couro e continuou a andar. Sentia os fios de sangue de um corte feito em sua testa pingando sob sua bochecha, mas não se importou em limpar. Passou por diversas vidraças, e em todas elas viu seu nariz torto e vermelho, inchado como um morango anormal. Zombou, intimamente, que agora parecia-se um pouco mais com Murdoc.

Murdoc... Aquele demônio verde... Seu corpo tremia de ódio somente por lembrar. Ele havia deixado Noodle ir. Se não fosse por isso, ela não estaria desaparecida. 2-D recusava a aceitar sua morte. Era algo que lhe parecia ser impossível. Algo, no fundo do seu corpo, dizia que a menina estava viva. Ele só não sabia explicar o que era.

*

Uma grande nuvem negra e carregada rodeava duramente a encosta da Kong Studios e o vento soprava forte contra o rosto do rapaz azulado. Foi uma boa caminhada do centro até ali, a montanha mais longínqua de Essex. 2-D arrastava-se morro acima, quase sem fôlego. Ao chegar no alpendre, logo sentiu o forte odor de poeira e carne podre misturada com água de chuva que emanava de todo o prédio. O rapaz empurrou e abriu as imensas portas de aço facilmente, elas nunca eram trancadas. Olhou para o saguão principal. Seus olhos enegrecidos percorreram toda a extensão da sala, de seus vários móveis cobertos com mantas de plástico empoeiradas, inúmeros quadros pendurados nas paredes e cobertos com lençóis sujos e rasgados. Lembrou-se de anos atrás.

Anos atrás aquele saguão arroxeado era entupido com diversas figuras do meio musical quase todos os dias. As mais de 50 salas da Kong serviam como local perfeito para festas que duravam fins de semana inteiros. Murdoc era o anfitrião perfeito. Mimava seus convidados com infindáveis rodadas de bebidas, porções e muita diversão liberada; na sala preferida de Noodle, a de jogos, caras de todos os tipos se reuniam para tentar vencer os recordes da pequena prodígio; nos quartos mais escuros, aqueles mais rendidos dormiam estirados pelo chão, nas camas ou nos sofás, ou faziam sexo à 2, 3 ou 4, era necessário apenas não se incomodar em foder e ser fodido; os banheiros eram apinhados com filas separadas por "necessidades básicas" e "apenas vômito".

Apesar de não ser o melhor dos ambientes, 2-D sentia-se em casa, pois era ali que estavam seus amigos. E a sua casa, é o lugar onde você é esperado por alguém. Ou pelo menos era nisso que ele acreditava.

Tentava misturar-se o máximo que podia, mas sempre acabava sozinho do lado de fora da gravadora, chutando pedras em meio às lápides velhas e mofadas. Costumava dizer que as pessoas só se aproximavam para comentar o quanto sua voz combinava com as músicas sádicas e melancólicas do Gorillaz. Tudo o que ele não precisava ouvir era o quanto aquelas músicas eram reais.

Nem tanto tempo depois, a Kong acumulava poeira, ossos e restos de zumbis-demônios. Vazia como uma casa mal-assombrada, ninguém além dos membros ousava pisar naquele lugar, o que tornava as coisas ainda mais difíceis.

- Vejo que a Bela Adormecida dormiu fora de casa de novo...

Um riso duro, metálico e sarcástico percorreu a sala seguido da provocação. Surgido das sombras, Murdoc aproximou-se de 2-D, olhando-o de cima a baixo.

- Onde esteve? – rosnou.

- Eu não tenho que te dar explicações. – 2-D respondeu entre dentes.

Murdoc soltava uma risada abafada enquanto sua língua passeava pelos dentes e lábios.

2-D permanecia parado, de frente para ele. Seu semblante era duro, quase impassível. Remoía-se de ódio por aquele homem, mas não era o suficiente para cobrir todo o medo que sentia dele.

Murdoc aproximou-se de 2-D a medida que seus olhos se apertavam em direção ao seu rosto. Certamente havia percebido o nariz ligeiramente torto e os outros hematomas no rosto. Mas não disse nada. Esgueirava o vocalista como um cão de guarda, examinava-o. Chegando ainda mais perto, encostou seu rosto próximo a orelha de 2-D enquanto sibilava.

- Eu ainda acabo com você, rato.

Os olhos negros e selvagens de Murdoc cruzaram os temerosos e enegrecidos de 2-D enquanto se afastava, ligeiramente desapertando a gola da camisa. O azulado estremeceu somente ao lembrar da respiração de Murdoc em seu pescoço. Podia ouvir em sua cabeça as batidas desiguais de seu coração e o sangue bombeando pelo corpo. Aquele maldito duende.

Assim que o líderdesapareceu novamente na escuridão da imensa sala, 2-D apressou-se para osegundo andar, onde ficava seu quarto. Sentia novamente aquele ardor em seupeito que só aparecia quando Murdoc se aproximava. Pensava ser o ódio que oconsumia pouco a pouco. Mas ele perceberia mais tarde. Tratava-se de umsentimento escuro, sujo, muito pior do que qualquer imundice que a Kong Studiosconseguiria juntar. Algo que, naquele momento, estava além da sua compreensão.

Gorillaz: Make Me Feel GoodOnde histórias criam vida. Descubra agora