A Mais Bela de Todas

100 35 2
                                    

A bruxa recém libertada do Espelho sabia que não teria outra oportunidade. Precisava agir imediatamente. A criança era o fruto do feitiço de amor de uma bruxa perversa, e se tivesse herdado os poderes malignos da mãe, era só uma questão de tempo até que o mundo mergulhasse numa Era de Escuridão e Horror.

Ela precisava impedir.

Agarrando a outra adaga do par que Morgana afiara, a mulher se esgueirou silenciosamente até o aposento contíguo, onde a criança dormia no berço, acompanhada da criada adormecida.

A criada não mentira quando dissera que era a criança mais bela que já havia visto. A menina era encantadora como um anjo, e, por um instante, o coração da bruxa vacilou.

Só por um instante.

Em seguida, recordando-se de sua origem, ela decidiu que não poderia arriscar deixando a menina viva. Ela fora concebida para tornar sua mãe a Rainha das Trevas, e sua própria escuridão, certamente seria imensa.

Além disso, ela sabia que assim que passasse o efeito do feitiço que Morgana lançara para que o Rei a amasse, a amargura realçaria suas perversidades e provavelmente o tornaria um monstro. Aquela menina não podia ser criada sob essa influência.

Determinada a expurgar aquele mal do mundo, a bruxa ergueu a adaga...

– SOCORRO! – gritou a criada, acordando de repente, dando de cara com a assassina com a arma erguida sobre o berço.

A bruxa teve apenas um segundo para reagir. E seu instinto foi afundar a arma de uma vez por todas no coração da criança.

A lâmina perfurou a carne. Todavia, não fora a do bebê.

Sem parar para pensar a respeito, apenas determinada a proteger a vida da filha de sua senhora, mesmo a custo da sua, a criada se lançou sobre o bebê, levando a facada em seu lugar.

Os guardas invadiram o quarto, atraídos pelo grito da criada, flagrando a assassina ainda com a mão em volta da arma do crime.

A lâmina penetrara no ombro da criada, e apesar da dor, ela ainda teve forças para pedir que os guardas protegessem o bebê, antes de perder os sentidos.

A feiticeira foi imediatamente levada à presença do Rei, que, acordado pelo alvoroço, clamava por explicações ainda no corredor.

– Majestade, nós flagramos esta mulher tentando assassinar sua filha – relatou um dos guardas.

– Minha filha foi ferida? – indagou o Rei, lívido como um cadáver.

– Não, felizmente. Elinor se atravessou na frente e levou o golpe em seu lugar.

– Faça o que puder por ela – ordenou o Rei. – Mande chamar imediatamente o médico, se ainda houver tempo.

– Agora mesmo, Majestade.

– Tragam a maldita! – ordenou o Rei.

Os guardas arrastaram a prisioneira através da escuridão. Várias perguntas passavam pela cabeça do Rei: quem era ela? Como entrara no castelo? Por que queria fazer mal a uma criança inocente? Mas ao pôr os olhos nela, todas as palavras evaporaram de sua mente.

Ela era, sem dúvida alguma, a mais bela de todas as mulheres. Sua beleza superava inclusive a da Rainha, sua esposa, de quem ele sequer lembrara de perguntar.

– Soltem-na – ordenou o Rei, num fio de voz, sem conseguir desviar os olhos da prisioneira.

– Mas, Majestade... – gaguejou um dos guardas que a seguravam. – É uma assassina...

– Você é surdo? – bradou o Rei. – Eu mandei soltá-la!

Os guardas obedeceram, a contragosto, afastando-se apenas um passo, e mantendo-se alertas para capturá-la, caso fizesse menção de escapar.

O Rei se aproximou e ergueu suavemente o rosto dela com as pontas dos dedos.

– Qual o seu nome?

Relutante, ela ergueu os olhos para ele, e o que viu a deixou apavorada. Ao contrário do que esperava, o que os olhos do Rei lhe devolviam não era raiva, nem ódio, nem mesmo indignação. Ele estava enlevado; olhando-a com curiosidade, com admiração, e – que os céus a ajudassem – com desejo.

– Ka... Katherina – respondeu ela, hesitante.

– Katherina – repetiu o Rei, saboreando cada sílaba de seu nome.

Os olhos dele mergulharam nos dela como que atraídos por um feitiço. Um feitiço que ela estava certa de não ter realizado.

Ela pôde ver cada emoção passando pelo rosto dele, desde a cobiça até a loucura, e não pôde evitar prender a respiração ao pressentir que ele estava prestes a beijá-la.

– Majestade! – chamou um dos guardas, interrompendo uma cena que nenhum deles conseguia compreender. Aquela mulher acabara de atentar contra a vida da filha recém-nascida do Rei, e mesmo assim, ele parecia... apaixonado.

Como se despertasse subitamente de um sono profundo, o Rei piscou, dando-se conta de repente do que estivera prestes a fazer.

– Levem-na para a masmorra – ordenou, sem qualquer emoção na voz. – Amanhã decidirei o seu destino.

Mas o amanhã não chegou. E durante meses, a mulher esteve prisioneira na masmorra do castelo, sem que sua sentença fosse pronunciada. A certa altura, ela pensava ter sido esquecida ali.

Mas a última coisa que o Rei conseguiu foi esquecê-la.

Foi somente no fim da tarde do dia seguinte à prisão da assassina que o Rei finalmente foi posto a par do desaparecimento da Rainha. Ele se lembrava, vagamente, de tê-la visto em sua alcova, durante a tempestade, no momento em que o castelo começou a tremer, porém, toda aquela noite estava envolvida em sombras e confusão em sua mente, de modo que ele quase se convencera de que aquela visão não passara de um sonho.

Semanas se passaram sem que ninguém descobrisse o que acontecera à Rainha. Muitos cogitavam que a assassina tivesse dado cabo dela antes de chegar à criança, talvez lançando-a de uma das janelas que se quebraram durante o terremoto, todavia, nenhum corpo fora encontrado. A única evidência de que Morgana deixara o castelo, era um pedaço rasgado de sua camisola que ficou preso no portão do cemitério.

A Rainha nunca mais foi vista.

No interior do cemitério, as abóboras cresceram espantosamente naquele outono; algumas delas ficaram bem mais altas do que as lápides que as rodeavam. E há quem diga que adquiriram um peculiar gosto de carne.

Branca de Neve e a Rainha das TrevasOnde histórias criam vida. Descubra agora