Espelho, Espelho Meu

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Vinte anos antes...

– Espelho, espelho meu... Existe mulher mais bela do que eu?

Quem visse a bela Morgana Le Fay jamais imaginaria que aquele rosto perfeito tivesse assistido à passagem de séculos, à virada de milênios, ao apogeu e à queda de civilizações milenares. Aqueles cabelos vermelhos e ondulados, aqueles olhos verdes provocantes e as curvas sinuosas de seu corpo já haviam enlouquecido heróis e até reis ao longo dos séculos. O Rei John era apenas sua mais recente vítima. Como tantos homens poderosos antes dele, o Rei fora seduzido pelo irresistível feitiço de Morgana.

Enlouquecido de amor, o Rei, cuja esposa falecera tragicamente apenas um ano antes, não hesitara em casar-se com a bela feiticeira. E agora ela se via prestes a concluir seu cruel e audacioso plano: crescia em seu ventre um filho do Rei.

Todavia, não era instinto maternal algum que levara Morgana a desejar tão ardentemente a concepção de um filho. Morgana descendia de uma poderosa linhagem de feiticeiros, porém, sua magia encontrava-se limitada por aquela casca mortal. Havia certas regras a seguir, ou ela seria caçada e punida por seu próprio povo. Morgana já havia enfrentado a ira dos homens inúmeras vezes. Fora enforcada, empalada, decapitada, queimada na fogueira e até mesmo forçada ao suicídio, bebendo veneno de víboras. Ao longo dos séculos, ela conhecera diversas formas de morte, porém a magia sempre a trazia de volta. Estava em seu sangue: só uma bruxa pode matar outra bruxa; assim como só um diamante pode cortar outro diamante. Uma sentença de morte proferida pelos anciãos de seu clã, seguida pela destruição completa de seu corpo, e um ritual de aclamação, envolvendo no mínimo três outras bruxas seria a única forma de destruí-la para sempre: exterminar seus poderes e banir sua alma para as trevas por toda a eternidade. Os mortais jamais poderiam fazer isso.

A sentença de morte fora declarada pelos anciãos do clã havia quase dois séculos, mas ninguém pôde capturá-la, para cumprir a sentença.

E só havia uma forma de garantir a imortalidade, na forma mais completa da palavra: tornando-se ela própria a Rainha das Trevas.

No extremo ocidente do mundo, o imponente Jardim das Hespérides guardava uma relíquia valiosíssima: uma romeira, com raízes tão profundas que chegavam ao inferno. Segundo a lenda, quando Hades seduzira Perséfone, a deusa da Primavera, e a levara para conhecer seus domínios infernais, ele colhera o fruto daquela árvore e o oferecera à amada. A romã era um símbolo de matrimônio e de fertilidade, por causa de suas muitas sementes. Ao comer a romã, Perséfone aceitara seus votos de casamento.

Como vingança pelo ato cometido às suas costas, Deméter, deusa da agricultura e mãe de Perséfone amaldiçoara a árvore fazendo-a secar. Mas o Jardim não estava nos domínios de Deméter para que lançasse suas mãos sobre ele. Ele pertencia à Hera, esposa de Zeus, e ela não desejava que a árvore mais bela e mais antiga de seu Jardim, símbolo da fertilidade que ela própria abençoava, morresse. Então, enquanto suas raízes e seu tronco morriam, Hera ordenou que o dragão que guardava o Jardim colhesse todos os frutos, para que depois as Hespérides, as ninfas vespertinas que cuidavam do Jardim, semeassem novas romeiras. No entanto, o dragão somente teve tempo de colher um único fruto.

Deméter, enfurecida com a interferência de Hera, fez com que o dragão engolisse o único fruto que havia salvo, e em seguida, o transformou em pedra.

Este último artifício irritou não apenas Hades, mas também Perséfone, que, apaixonada pelo Senhor dos Mortos, pretendia tornar sagrado o fruto que selara seu matrimônio. Então, os dois deuses do Mundo Inferior uniram suas forças para preservar o fruto no interior do dragão de pedra, mantendo-o preso, e vivo no fundo de sua garganta, quase como um coração de carne no interior de um corpo de pedra.

De acordo com a lenda, aquele que colher o fruto da garganta do dragão, e plantar suas sementes no Jardim de Hera, receberá como recompensa a imortalidade, e domínio sobre o poder das Trevas.

Mas há uma condição. Somente um Rei ou Rainha pode adentrar o Jardim das Hespérides, e aproximar-se do dragão de pedra. Qualquer plebeu mortal que cruzar o limite da entrada do Jardim, mesmo um feiticeiro, vira pó; uma prova final para demonstrar às majestades infernais que é digno do poder que ganhará.

Um infeliz contratempo que Morgana estava a caminho de resolver.

– O Rei Arthur tirou a espada da pedra para provar que era digno de ser rei. E eu arrancarei o coração do dragão de pedra para provar que sou digna de ser a Rainha das Trevas.

Como Rainha das Trevas, não haveria limite para a feiticeira usar seu poder, e conquistar tudo o que desejasse, sem nada temer. Ela poderia manipular o tempo e a matéria, assumir a forma que desejasse ou que fosse mais conveniente, vingar-se de seus inimigos, e até mesmo assenhorear-se da morte.

Mas para isso, ela precisava ser a Rainha. E seu trono só seria legitimado com um herdeiro, e com a morte do Rei.

– Agora nada mais poderá me deter – comemorou Morgana, admirando a lâmina da adaga, com a qual pretendia naquela mesma noite assassinar o Rei John.

– Eu aconselharia a ter cautela, Majestade – disse o Espelho Mágico, à sua frente.

Morgana riu com desdém.

– Por que eu deveria? Eu já tenho o trono e o herdeiro. Só falta me livrar daquele tolo.

– Na verdade, você ainda não tem o herdeiro – alertou o Espelho.

Ao que a feiticeira se enfureceu. E respirou profundamente antes de se voltar para o Espelho.

– O que quer dizer com isso?

– Seu filho ainda não nasceu. E esta criança só será legitimada depois do parto – explicou o Espelho. – Eu aconselharia a conservar o Rei ao seu lado. Para o caso de ainda lhe ser útil.

Morgana respirou fundo, aborrecida.

– Talvez tenha razão. Até que este contratempo – ela indicou o próprio ventre – esteja resolvido, é melhor que o Rei permaneça vivo. Para garantir que nada poderá impedir os meus planos.

– Exatamente, Majestade – aquiesceu o Espelho, com um sorriso perverso, que foi correspondido pela Rainha.

Meses mais tarde, numa terrível noite de tempestade, a Rainha deu à luz uma menina.

– Ela é linda, Majestade – disse a criada que auxiliara no parto. – Alva como a neve. Tem cabelinhos negros como a noite, e os lábios tão vermelhinhos... Acho que nunca vi criança tão linda.

– É claro que ela é linda – disse a Rainha, recuperando o fôlego. – É minha filha!

– Já escolheu o nome dela?

Perséfone, pensou Morgana. Digno da Rainha do Inferno, como ela provavelmente me tornará.

Todavia ela não respondeu. Descartou a pergunta com um gesto, e pediu que a criada levasse a menina, para vesti-la apropriadamente, antes de apresentá-la ao pai.

– O Rei ficará muito contente – garantiu a criada, deixando o quarto.

Morgana sorriu, sentindo a alegria expandir-se em seu peito, à medida que a vitória se aproximava.

Um corvo, empoleirado no imenso carvalho em frente à janela, grasnou forte, como se saudasse a futura Rainha das Trevas por sua vitória iminente, e alçou voo, em direção à tempestade.

– Vá mensageiro das trevas – disse a Rainha, interpretando como um sinal de que seu intento estava perto de se concretizar.

E com a alegria, suas forças foram sendo restabelecidas, até que ela sentiu que podia gargalhar.

E foi exatamente o que fez. Uma gargalhada triunfante irrompeu pela garganta da Rainha, à medida que ela sentia que era apenas uma questão de horas até que pudesse se levantar e esfaquear o coração do Rei.

E então nada mais a separaria do poder das Trevas.

Branca de Neve e a Rainha das TrevasOnde histórias criam vida. Descubra agora