3- Sol e um clichê

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O DIA MAL COMEÇOU e o calor já está tão apocalíptico que dá vontade de chorar. Na minha cidade, Clovic, até temos uma piscina pública, mas ela é tão suja, que ninguém gosta muito de ir lá. Quando está quente assim e você não tem a sua própria piscina, as únicas opções que restam para nós, meros mortais, é nos esgueirarmos para alguma casa que tenha ou ir à praia na cidade vizinha, em São José. Já fui à casa do Cadu ontem, então a primeira opção está fora de cogitação. Da mesma maneira, a praia mais próxima fica a duas horas de distância e eu nem sequer tenho alguém para ir comigo, em primeiro lugar. Acho que a única coisa que eu posso fazer hoje é limpar a casa. Se o chão estiver limpo, ele também ficará gelado e eu vou poder deitar no piso e ler o livro sáfico que eu comprei na semana passada.

É. Grande férias de verão.

Eu começo limpando o chão, mas depois eu me empolgo e limpo tudo. Passo pano nos móveis, no chão, em todo o lugar. Depois, vou relaxar. Pego o meu livro no meu quarto e preparo um lanche. O cheiro do produto de limpeza que eu usei é tão forte que a casa inteira cheira a limão.

Estou andando para a sala, equilibrando um copo de suco de laranja e um prato com um misto-quente, quando a minha mãe desce as escadas.

- Lily, quer ir na academia comigo?

Faço uma careta, enquanto parto o misto quente no meio, assistindo o queijo derretido se expandir e quebrar em duas partes. Nesse calor? Credo.

- Não, obrigada.

- Sua resolução de ano novo não era se tornar fisicamente mais ativa?

- Eu ainda tenho quase doze meses para fazer isso. Por enquanto, vou me concentrar em ler. Tenho que ler o dobro de livros que eu li no ano passado.- Eu abro o livro na primeira página.- Acho que nesse ano vou ficar bem ocupada.

Minha suspira e vai até a cozinha para tomar seu café da manhã. Eu estou a ouvindo mexer na gaveta de talheres, quando o Artur desce as escadas, recém-saído do banho, com a mochila nas costas.

- Artur, aonde você vai?- A minha mãe quer saber.

- Na praia com o Alex. E eu preciso de dinheiro para a gasolina.

A minha mãe afunda a sua colher no mamão.

- Por que eu sinto que desde que o Alex começou a dirigir, eu estou colocando mais gasolina no carro do pai dele, do que no meu?

O Alex é o melhor amigo do meu irmão e mora aqui na rua, no fim da esquina. No final do ano passado, ele emitiu a sua carteira de motorista e agora ele e o Artur vivem por aí, dando voltas no carro do pai do Alex. Às vezes, se eu estou por aqui a toa, eles me levam. Na semana passada, fomos ao cinema assistir o novo filme da Marvel.

Artur dá de ombros, e pega um copo no armário, o enchendo com a água da garrafinha.

- Se você me comprasse um carro, você botaria gasolina no meu carro.

Minha mãe sorri com a boca fechada. Essa é a reação mais característica da minha mãe: O sorriso falso. Eu e meu irmão crescemos cercados por sorrisos falsos, promessas não compridas e um leve aroma de hidratante facial e tabaco.

- Boa tentativa.

O Artur vem até aqui e se senta no sofá, para secar o cabelo. Eu largo o meu livro e me inclino para ele.

- Ei, eu posso ir com vocês?

Artur nem me olha.

- Não.

Eu me encolho e olho para a minha mãe. Ela continua comendo o mamão.

- Então, mãe acho que eu vou precisar... - Artur continua.

Saio daqui e vou colocar o prato vazio na cozinha, antes que eu ceda aos meus instintos mais primitivos e voe em cima do idiota do meu irmão.

- Por que você não pode levar a menina? - A minha mãe quer saber, o interrompendo.

O Artur faz um gesto com o ombro.

- Vai rolar uma festa na praia e a praia vai tá cheia de gatinhas.- Ele me olha e estremece.- Ela vai se sentir mal lá.

Ignorando a provocação do meu irmão, eu pergunto:

- Vai ter festa na praia? De quem?

- Da Natálie Garcia. Ela tá fazendo aniversário.

A Natálie Garcia é a atual melhor amiga da minha antiga melhor amiga, a Alice Giócomo.

- Hum.- Eu faço e volto para o sofá.- De qualquer maneira, Artur, eu só vou deitar lá e ler o meu livro. Pode ter certeza que eu não quero ir pelo prazer da sua companhia. Você nem precisa ficar perto de mim.

Por que o Artur não entende que eu estou em crise? Eu preciso de sol, de água de coco e do mar para recuperar a minha estabilidade emocional. Eu estou tentando, mas depois daquela conversa com a Melissa, eu só consigo pensar nela. Na Gabi. O pior, é que eu sei que o meu irmao só está tão relutante em me levar porque quer me implicar. Às vezes, o Artur sente a necessidade, sei lá, histórica de ser chato comigo. Mas, antigamente, não era assim. Houve uma época em que ele gostava de me ter por perto. Ele dormia no meu quarto e me deixava brincar com o cabelo dele. Mas aí ele entrou para o ensino médio.

Exatamente como eu previa, o Artur finge que eu não sou nada mais do que um inseto irritante e continua falando com a minha mãe:

- Como eu ia dizendo...

Minha mãe joga a casca do mamão no lixo.

- Artur, leva a bichinha. Eu vou pagar a gasolina, mas você terá que leva-la.

Ela tira o dinheiro da carteira e coloca em cima do balcão.

- E tome conta dela!- Ela ordena, enquanto sobe as escadas para voltar para o seu quarto.

O Artur vira os olhos. Eu sorrio. Esses são os pequenos prazeres de ser a filha mais nova. O Artur já deveria estar acostumado.

- Vou me arrumar.- Eu digo, pegando meu livro e indo subir as escadas.

- Vamos sair em meia hora, cabeçuda, com ou sem você!

- Tá!

- E vê se coloca um biquíni decente!- Ele grita para as minhas costas.- De preferência, vá de short!

- Pode deixar!

Devolva o meu coraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora