Eu tinha mais uma tarefa a cumprir antes de voltar à mansão de meu pai. Os aldeões, que certa vez tinham me olhado com desprezo ou me ignorado, olhavam boquiabertos agora, e alguns se colocavam em meu caminho para perguntar sobre minha tia, minha fortuna, diversas vezes. Eu determinada e educadamente me recusei a conversar com eles, a dar-lhes qualquer coisa sobre a qual pudessem fofocar. Mas, mesmo assim, levei tanto tempo para chegar à parte pobre de nossa aldeia que estava esgotada quando bati à primeira porta surrada.
Os desfavorecidos de nossa aldeia não fizeram perguntas quando entreguei a eles as pequenas sacolas de prata e ouro. Tentaram recusar, alguns sequer me reconheceram, mas deixei o dinheiro mesmo assim. Era o mínimo que podia fazer.
Conforme caminhei de volta à mansão de meu pai, passei por Tomas Mandray e seus amigos, parados perto da fonte da aldeia, conversando sobre alguma casa incendiada com a família dentro há uma semana, conjecturando se haveria algo para saquear. Ele me olhou por tempo demais, os olhos percorrendo livremente meu corpo com um meio sorriso que eu o vira dar para as garotas da aldeia centenas de vezes. Por que Nestha tinha mudado de ideia? Apenas encarei Tomas com desprezo e segui.
Eu estava quase fora da aldeia quando a risada de uma mulher ecoou pelas pedras, e, quando virei a esquina, fiquei cara a cara com Isaac Hale... e comuma jovem bonita e rechonchuda que só podia ser a nova esposa dele. Estavam de braços dados, ambos sorrindo; ambos profundamente felizes.
O sorriso de Isaac hesitou quando ele me viu.
Humano... ele parecia tão humano, com os braços e as pernas desengonçados, a beleza simples, mas aquele sorriso que Isaac mostrara momentos antes o transformava em algo mais.
A mulher dele olhou de mim para Isaac, talvez um pouco nervosa. Como se o que quer que sentisse por ele — o amor que eu já vira brilhando — fosse tão novo, tão inesperado, que ela ainda temia seu sumiço. Com cuidado, Isaac inclinou a cabeça para mim, em cumprimento. Ele era um garoto quando parti, mas aquela pessoa que se aproximava de mim... não importa o que tivesse desabrochado com a esposa, independentemente do que houvesse entre eles, transformara Isaac em um homem.
Nada; não havia nada em meu peito, minha alma, por ele, além de uma sensação leve de gratidão.
Alguns passos a mais nos levaram a ultrapassar um ao outro. Dei um largo sorriso para Isaac, para os dois, e, então, fiz uma reverência com a cabeça, desejando que ficassem bem, de todo o coração.
O baile que meu pai faria em minha homenagem aconteceria em dois dias, e a casa já parecia uma confusão de atividades. Tanto dinheiro desperdiçado em coisas que jamais sonháramos ter, mesmo por um segundo. Eu teria implorado para que ele não o fizesse, mas Elain tomara as rédeas do planejamento e encontrara para mim um vestido de última hora, e... seria apenas uma noite. Uma noite aturando as pessoas que nos haviam rechaçado e nos deixado passar fome durante anos.
O sol estava quase se pondo quando encerrei meu trabalho do dia: cavar um novo quadrado de terra para o próximo jardim de Elain. Os jardineiros tinham ficado levemente horrorizados por outra de nós ter passado a realizar a atividade — como se em breve fôssemos começar a fazer todo o trabalho deles por conta própria, e acabássemos dispensando-os. Eu assegurei a eles que eu não tinha um dedo verde, e só queria algo para ocupar o dia.
Mas ainda não tinha decidido o que faria com minhas semanas, ou o mês, ou qualquer coisa depois disso. Se havia mesmo um surto da praga acontecendo do outro lado da muralha, se aquela mulher, Amarantha, estava enviando criaturas para tirar vantagem disso... Era difícil não pensar naquela sombra em meu coração, a sombra que seguia cada passo. Eu não sentia vontade de pintar desde que tinha chegado; e aquele lugar dentro de mim, da onde vinham todas aquelas cores e os formatos e as luzes, tinha se tornado... quieto e silencioso e esmaecido. Em breve, falei comigo mesma. Em breve eu compraria tintas e começaria de novo.
Enfiei a pá na terra e empurrei com o pé, descansando por um momento. Talvez os jardineiros tivessem apenas se horrorizado com a túnica e a calça que eu vestia. Um deles até saíra correndo a fim de me trazer um daqueles chapéusde abas grandes que Elain usava. Eu o coloquei para agradar aos jardineiros; minha pele já se tornara cheia de sardas e bronzeada pelos meses que eu passara perambulando pelas terras da Corte Primaveril.
Olhei para as mãos, segurando o cabo da pá. Cheias de calos, cicatrizes e sujeira sob as unhas. Certamente ficariam horrorizados quando me vissem suja de tinta.
— Mesmo que as lavasse, não teria como esconder — disse Nestha, atrás de mim, se aproximando daquela árvore sob a qual gostava de se sentar. — Para se encaixar, você precisaria usar luvas, e jamais tirá-las.
Ela usava um vestido simples, lilás-claro, de musselina, com a metade dos cabelos para cima e oscilando às costas, como um lençol marrom-dourado. Linda, imperiosa, serena como um Grão-Feérico.
— Talvez eu não queira me encaixar em seus círculos sociais — falei, me voltando para a pá.
— Então por que se dá o trabalho de ficar aqui? — Uma pergunta ríspida e fria.
Enfiei a pá na terra com mais força, os braços e as costas se repuxando quando levantei uma pilha de solo escuro e grama.
— É meu lar, não é?
— Não, não é — refutou ela, simplesmente. Enfiei a pá na terra de novo. — Acho que seu lar é muito, muito longe.
Parei.
Devagar, soltei a pá no chão e a encarei. — A casa da tia Ripleigh...
— Não existe tia Ripleigh. — Nestha levou a mão ao bolso e atirou algo à terra revirada.
Era um pedaço de madeira, que parecia ter sido arrancado de algum lugar. Pintado na superfície lisa estava um lindo emaranhado de gavinhas e... dedaleiras. Dedaleiras pintadas com o tom errado de azul.
Perdi meu fôlego. Todo aquele tempo, todos aqueles meses...
— O truquezinho de sua besta não funcionou comigo — disse ela, com uma calma de aço. — Aparentemente, uma vontade de ferro é todo o necessário para evitar que um encantamento te atinja. Então, precisei observar enquanto papai e Elain passavam de histéricos chorosos para... nada. Precisei ouvi-los conversar sobre que sorte tinha sido você ser levada para a casa de uma tia inventada, sobre como um vento de inverno tinha destruído nossa porta. E achei que tinha ficado louca, mas sempre que achava isso, olhava para aquela parte pintada da mesa, e depois para as marcas de garras mais adiante, sabia que não era invenção de minha cabeça.
Eu jamais tinha ouvido falar de um encantamento não funcionar. Mas Nestha tinha muito controle sobre a própria mente. Ela havia erguido paredes mentaistão fortes — de aço e ferro e freixo — que nem mesmo a magia de um Grão- Senhor conseguia penetrá-las.
— Elain falou... que você foi me visitar, no entanto. Que tentou.
Nestha riu com deboche, o rosto sério e cheio daquela raiva que fervilhava havia muito, e que ela jamais conseguia conter.
— Ele levou você pela noite, alegando alguma baboseira sobre o Tratado — disse Nestha. — Então, tudo continuou como se jamais tivesse acontecido. Não era certo. Nada daquilo era certo.
Minhas mãos desceram para os flancos.
— Você foi atrás de mim—falei. — Foi atrás de mim... até Prythian.
— Cheguei à muralha. Não consegui encontrar a entrada.
Levei a mão trêmula até o pescoço.
— Você caminhou por dois dias até lá, e dois dias de volta, pelo bosque, no inverno?
Ela deu de ombros, olhando para a lasca de madeira que tinha salvado da mesa.
— Contratei aquela mercenária da cidade para me levar uma semana depois que você se foi. Com o dinheiro de sua pele. Ela foi a única que pareceu acreditar em mim.
— Você fez isso... por mim?
Os olhos de Nestha — meus olhos, os olhos de nossa mãe — encararam os meus.
— Não era certo — repetiu ela. Tamlin estava errado quando discutimos se meu pai teria ido atrás de mim, ele não tinha a coragem, o ódio. No máximo, ele teria contratado alguém para fazer aquilo por ele. Mas Nestha fora com a mercenária. Minha irmã fria e cheia de ódio estivera disposta a desbravar Prythian para me resgatar.
— O que aconteceu com Tomas Mandray? — perguntei, as palavras contidas.
— Percebi que ele não teria me acompanhado para resgatá-la de Prythian.
E aquilo, para ela, que tinha aquele coração revoltado e irredutível, teria sido a gota d'água.
Olhei para minha irmã, olhei de verdade para ela, para aquela mulher que não conseguia suportar os mentirosos que agora a cercavam, que jamais tinha passado um dia na floresta, mas entrara no território dos lobos... Que tinha encoberto a perda de nossa mãe, depois nossa ruína, com ódio frio e amargura, porque o ódio fora um bote salva-vidas, e a crueldade, uma válvula de escape. Mas ela se importava — no fundo, ela se importava, e talvez me amasse com mais intensidade do que eu poderia entender, mais profunda e lealmente.
— Tomas nunca mereceu você mesmo — falei baixinho.
Minha irmã não sorriu, mas uma luz brilhou nos olhos azul-acinzentados.— Conte tudo que aconteceu — falou Nestha, proferindo uma ordem, não um pe dido.
Então contei.
E, quando terminei minha história, Nestha apenas me encarou por um bom tempo, antes de me pedir que a ensinasse a pintar.
Ensinar Nestha a pintar foi tão agradável quanto eu tinha esperado, mas pelo menos forneceu uma desculpa para evitarmos as partes mais ocupadas da casa, que se tornaram mais e mais caóticas conforme meu baile se aproximava. Materiais de pintura eram fáceis de conseguir, mas explicar como eu pintava, convencer Nestha a expressar o que lhe ia na mente, no coração... Ao menos ela repetia minhas pinceladas com a mão precisa e firme.
Quando saímos do quarto silencioso que havíamos ocupado, ambas sujas de tinta e manchadas de carvão, o palacete finalmente terminava os preparativos. Lanternas de vidro colorido ladeavam a longa entrada, e, do lado de dentro, guirlandas e festões com todas as flores e cores decoravam cada corrimão, cada superfície, cada arco. Lindo. Elain tinha selecionado as flores por conta própria, e dava instruções sobre onde seriam colocadas.
Nestha e eu subimos as escadas, mas, quando chegamos ao fim do lance, meu pai e Elain surgiram abaixo, de braços dados.
O rosto de Nestha se contraiu. Meu pai murmurou os parabéns a Elain, que sorriu para ele e apoiou a cabeça em seu ombro. E fiquei feliz pelos dois; pelo conforto e pela facilidade do estilo de vida dos dois, pela alegria no rosto tanto de meu pai quanto de minha irmã. Sim, tinham alguns ressentimentos, mas ambos pareciam tão... relaxados.
Nestha caminhou pelo corredor, e eu a segui.
— Há dias—falou Nestha, quando parou diante da porta do quarto dela, em frente ao meu — em que quero perguntar a ele se lembra dos anos em que quase nos deixou morrer de fome.
— Você também gastava cada moeda que eu conseguia—lembrei-a.
— Eu sabia que você conseguiria mais. E, se não conseguisse, então eu queria ver se ele sequer tentaria conseguir alguma sozinho. Em vez de entalhar aqueles pedaços de madeira. Se sairia de verdade e lutaria por nós. Eu não podia tomar conta de nós, não como você fazia. Eu a odiava por isso. Mas o odiava mais. Ainda odeio.
— Ele sabe?
— Ele sempre soube que o odiei, mesmo antes de nos tornarmos pobres. Ele deixou mamãe morrer, tinha uma frota de navios à disposição para velejar pelo mundo em busca da cura, ou poderia ter contratado homens para irem a Prythian implorar por ajuda. Mas ele permitiu que ela morresse.
— Ele a amava, ficou de luto por ela. — Eu não sabia qual era a verdade, talvez as duas coisas.
— Ele deixou que ela morresse. Você teria ido ao fim do mundo para salvar— Ele deixou que ela morresse. Você teria ido ao fim do mundo para salvar seu Grão-Senhor.
Meu peito pareceu vazio de novo, mas simplesmente respondi: — Sim, eu teria. — Então, entrei no quarto para me arrumar.
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Corce de espinhos e rosas
Romanceconta a história de Feyre, uma humana que vive na extrema pobreza e tem que se virar sozinha para sustentar suas duas irmãs e seu pai. O mundo em que ela vive é dividido entre humanos e seres mágicos chamados feéricos, considerados assassinos cruéis...