꧁𝑐𝑎𝑝-002꧂

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O sol tinha se posto quando saí da floresta; meus joelhos tremiam.

Minhas mãos, rígidas por segurar as pernas do cervo, haviam ficado completamente dormentes quilômetros atrás.

Nem mesmo a carcaça conseguia afastar o frio que se intensificava.

O mundo estava coberto por matizes de azul-escuro, interrompidos apenas por raios de luz amanteigada que escapavam das janelas fechadas de nosso chalé em ruínas.

Era como caminhar por uma pintura viva - um momento de quietude tornado mais lindo pela agilidade com que os azuis se transformavam em escuridão sólida.

Conforme me arrastava pelo caminho, cada passo impulsionado apenas pela fome quase desnorteadora, as vozes de minhas irmãs flutuaram até me encontrar.

Não precisei discernir as palavras para saber que, muito provavelmente, conversavam sobre algum rapaz, ou sobre as fitas que viram na aldeia, quando deveriam cortar lenha, mas sorri um pouco mesmo assim.

Chutei as botas contra o batente da porta de pedra, tirando a neve do solado.

Pedaços de gelo se desprenderam das pedras cinza do chalé, revelando as marcas de proteção desbotadas entalhadas no portal.

Meu pai tinha, certa vez, convencido um charlatão fortuito a trocar os entalhes de proteção contra feéricos por uma de suas próprias esculturas de madeira.

Meu pai podia fazer tão pouco por nós que não tive coragem de dizer a ele que os entalhes eram inúteis - e, sem dúvida, falsos.

Mortais não tinham magia; não possuíam nada da força e da velocidade superiores dos feéricos ou dos Grão-Feéricos.

O homem, alegando ter sangue Grão-Feérico em sua linhagem, simplesmente entalhou as espirais, os
redemoinhos e as runas ao redor da porta e das janelas, murmurou algumas palavras sem sentido e seguiu seu caminho.

Abri a porta de madeira e a maçaneta de ferro congelada feriu minha pele, como uma víbora.

Calor e luz me cegaram quando entrei.

- Feyre! - Ouvi o arquejo baixo de Elain, pisquei de volta contra a luminosidade do fogo e, então, vi a segunda mais velha de minhas irmãs diante de mim. Ela estava enroscada em um cobertor, mas os cabelos castanho- dourados, que todas herdamos, estavam perfeitamente presos em um coque.

Oito anos de pobreza não a haviam destituído do desejo de parecer linda.

- Onde conseguiu isso? - A fome implícita tornou suas palavras afiadas.

Não mencionou o sangue em mim.

Eu desistira, havia muito, de que elas reparassem se eu voltava da floresta toda noite.

Pelo menos até que ficassem com fome de novo.

Minha mãe não as obrigara a jurar nada em seu leito de morte.

Respirei para me acalmar quando soltei a corça dos ombros.

O animal acertou a mesa de madeira com um estampido, chacoalhando uma xícara de cerâmica do outro lado.

- Onde acha que consegui? - Minha voz tinha ficado rouca. Desenrolei a pele de lobo do corpo da corça e, após descalçar as botas e colocá-las ao lado da porta, eu me virei para Elain.

Seus olhos castanhos - os olhos de meu pai - permaneceram na corça.

- Vai demorar muito para você limpar?
Eu.

Não ela, não as outras. Nunca vi as mãos de minhas irmãs grudentas de
sangue e pele.

Eu aprendera a preparar e limpar minhas caças, graças à instrução de outros.

Corce de espinhos e rosas Onde histórias criam vida. Descubra agora