impiedosos em nossa aldeia.Já fazia anos que eu sabia que os monstros em nosso reino mortal eram tão ruins quanto aqueles do outro lado da muralha.
A besta riu com escárnio.
- Quanto vale a vida de sua filha para você? Acha que equivale a uma qua ntia ?
Nestha ainda mantinha Elain atrás de si.O rosto de Elain estava tão pálido que se igualava à neve que caía pela porta aberta.
Mas, com as sobrancelhas abaixadas, Nestha monitorava cada movimento que a criatura fazia.
Ela nem se importou de olhar para meu pai, como se já soubesse qual era a resposta.
Quando meu pai não respondeu, ousei dar outro passo na direção da fera, atraindo sua atenção para mim.
Eu precisava tirá-la dali-afastá-la de minha família.
Pelo modo como o animal afastou minha faca, qualquer esperança de escapar estava em, de alguma forma, surpreendê-lo.
Com a audição aguçada do feérico, eu duvidava de que teria qualquer chance em algum momento, pelo menos até ele acreditar que eu era dócil.
Se tentasse atacar o animal ou fugir antes disso, ele destruiria minha família por diversão.
E então me encontraria de novo.
Eu não tinha escolha a não ser partir.
Depois, encontraria uma oportunidade de cortar a garganta do animal. Ou pelo menos debilitá-lo o suficiente para fugir.
Contanto que os feéricos não conseguissem me encontrar de novo, não poderiam me fazer cumprir o Tratado.
Mesmo que isso me tornasse uma amaldiçoada quebradora de juramentos.
Mas, se fosse com a besta, estaria quebrando a promessa mais importante que eu já fizera.
Isso com certeza vencia um tratado antigo que eu sequer havia assinado.
Soltei o cabo da adaga que me restava, e encarei os olhos verdes em um longo silêncio, antes de dizer:
- Quando partimos?
Aquelas feições lupinas permaneceram ferozes, cruéis.Qualquer esperança teimosa de resistência morreu quando o animal foi até a porta - não, até a aljava que eu tinha deixado atrás dela.
Ele pegou a flecha de freixo, farejou e grunhiu.
Com dois movimentos, o animal partiu a flecha ao meio e a jogou na fogueira atrás de minhas irmãs antes de se voltar para mim.
Eu conseguia sentir o cheiro de minha ruína em seu hálito quando o animal falou:
- Agora.Agora. Até mesmo Elain ergueu a cabeça para me encarar com horror mudo.
Mas não podia olhar para ela, não podia olhar para Nestha; não quando ainda estavam agachadas ali, ainda em silêncio.
Eu me virei para meu pai. Os olhos dele estavam marejados, então olhei para os poucos armários que tínhamos.
Narcisos desbotados, amarelos demais, se curvavam sobre os puxadores. Agora.
A besta caminhou de um lado para outro em frente à porta.
Eu não queria contemplar para onde iria ou o que faria comigo.
Correr seria tolice até que fosse o momento certo.
- O cervo vai durar duas semanas - falei para meu pai, enquanto reunia minhas roupas para me proteger do frio.
- Comece com a carne fresca, então passe para a carne já seca, você sabe como fazer isso.
- Feyre... - sussurrou meu pai, mas segui enquanto fechava o manto.
- Deixei o dinheiro das peles na cômoda - avisei.
- Vai durar um tempo se forem cuidadosos.
- Finalmente, olhei para meu pai de novo e me permiti memorizar as feições de seu rosto.
Meus olhos arderam, mas pisquei para afastar as lágrimas quando enfiei as mãos nas luvas gastas.
- Quando a primavera chegar, cacem perto da vegetação ao sul da grande curva do rio Nascente de Prata, os coelhos fazem as tocas ali.
Peçam... peçam a Isaac Hale que mostre como montar armadilhas.
Ensinei a ele no ano passado.
Meu pai assentiu, cobrindo a boca com uma das mãos.
A besta grunhiu como advertência e saiu noite afora.
Fiz menção de a seguir, mas parei a fim de observar minhas irmãs, ainda agachadas ao lado da lareira, como se não ousassem se mover até que eu fosse embora.
Elain disse meu nome sem emitir som, mas continuou encolhida, manteve a cabeça baixa.
Então, me voltei para Nestha cujo rosto era tão parecido com o de minha mãe, tão frio e determinado.
- O que quer que faça - disse eu, baixinho -, não se case com Tomas Mandray.
O pai dele bate na mulher, e nenhum dos filhos faz nada para impedir.
- Os olhos de Nestha se arregalaram, mas acrescentei: - Hematomas são mais difíceis de esconder que a pobreza.
Nestha enrijeceu o corpo, mas não disse nada - nenhuma de minhas irmãs disse algo - à medida que me dirigia à porta aberta.
Mas a mão de alguém se fechou em meu braço, me puxando até que eu parasse.
Quando me virei para olhar para ele, meu pai abriu e fechou a boca. Do lado de fora, a besta, sentindo que eu tinha sido detida, emitiu um grunhido estrondoso na direção do chalé.- Feyre - disse meu pai. Os dedos tremeram quando segurou minhas mãos enluvadas, mas os olhos dele ficaram mais nítidos e mais fortes do que eu vira em anos.
- Você sempre foi boa demais para este lugar, Feyre.
Boa demais para nós, boa demais para qualquer um.- Ele apertou minhas mãos.
- Se algum dia fugir, se convencê-los de que pagou sua dívida, não volte.
Eu não esperava um adeus de partir o coração, mas não imaginava aquilo também.
-Jamais volte - aconselhou meu pai, soltando minhas mãos para me sacudir pelos ombros.
-Feyre. - Meu pai disse meu nome às pressas, a garganta oscilando.
- Vá para algum lugar novo e construa sua reputação lá.
Ao longe, a besta era apenas uma sombra, me chamando para um destino que eu, sem querer, tinha infligido a mim mesma e a minha família.Uma vida por outra... mas e se a vida oferecida como pagamento também significasse a perda de outras três? Só esse pensamento me deu coragem, me fez voltar à realidade.
Eu jamais contei a meu pai sobre a promessa que tinha feito a mamãe, e não havia por que explicar agora.
Então me desvencilhei dele e saí.
Deixei que os sons da neve estalando sob meus pés levassem as palavras de meu pai enquanto seguia a fera para o bosque envolto pela noite.
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Corce de espinhos e rosas
Romansaconta a história de Feyre, uma humana que vive na extrema pobreza e tem que se virar sozinha para sustentar suas duas irmãs e seu pai. O mundo em que ela vive é dividido entre humanos e seres mágicos chamados feéricos, considerados assassinos cruéis...