Capítulo 13

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  Três semanas depois e a frase de Dorian ainda ecoava em meus tímpanos, uma eterna música para meus ouvidos.
  Fechei o livro em meu colo, revirei o corpo até estar de barriga para baixo, o tapete felpudo rosa céu acariciando meus braços, barriga e pernas nuas.
  Debaixo da minha cama havia um mapa incompleto das redondezas feito após muito afinco e tempo.
  Ana estava distante, resolvendo assuntos de família pelo que um dos outros criados me disse. Acabou que ainda não tivemos nenhuma conversa, todas as vezes em que me aproximava a mulher se lembrava que havia esquecido panelas inexistentes no fogo, ou que tinha que estender roupas. Dei o espaço dela, quando ela estivesse pronta então haveria uma conversa.
  Os empregados foram afastados durante alguns dias para uma comemoração local, um festival para um deus da colheita, como cresci em uma floresta rezando somente para a deusa da caça Amahr eu não tinha muito tato para outras entidades.
  Dorian saiu no dia seguinte a "nossa noite".
  Não houve nada, o senhor do fogo simplesmente se deitou a meu lado e dormiu, na manhã seguinte acariciou meus cabelos e saiu, desde então eu não o vi ou soube dele.
  Aquele jantar era outro assunto pesando em minha mente. Ele o fez para mim, foi gentil por mim e me olhou daquele jeito a noite inteira, um modo que não sabia explicar muito bem, tantas coisas juntas, tanto a ser visto e eu incapaz de lê-los.
  Tracei as linhas do mapa com a ponta da unha, minhas unhas grandes e cuidadas, nunca haviam passado de uma coisa feia, suja e curta.
  Recitava meu plano baixinho, decorar parecia-me mais pertinente, ter o mapa já era um risco mas haviam desculpas em meu arsenal que eu poderia usar caso o papel fosse descoberto, já um plano por escrito...
  Eu precisava encontrar um métodos de partir quando Dorian estivesse muito longe, em uma de suas viagens frequentes, de repente roubar um cavalo do estabulo, algumas provisões. Por Amahr, um plano terrível, péssimo a cada passagem de suas etapas.
  Não percebi as lágrimas até uma delas pingar no papel o marcando.
  Afastei os cachos do rosto, enxuguei as lágrimas e caí esparramada na maciez do carpete, levei meus joelhos de encontro ao peito e fiquei em uma posição fetal vulnerável.
  O vento bateu em minhas janelas atraindo meu olhar.
  O céu crepuscular manchados por nuvens ralas em seu azul soturno faziam com que me lembrasse dos dias de caça, onde a coisa mais importante a me preocupar era se voltaria com algum alimento para casa.
  Onde Lana estava? E Nix? Onde nessa imensidão desse mundo as duas pessoas que mais amo estariam. Eu não gostava da ideia de que ainda não notaram que desapareci, isso fazia-me ficar com o coração pesado demais, porém havia a maldita possibilidade, e era uma possibilidade altíssima.
  Guardei o mapa e o livro.
  Na mansão não havia viva alma, apenas e somente eu. Porém ainda conseguia sentir a vibração da presença dos lobos sentinelas de Dorian, eram criaturas espertas e nunca, jamais, estavam a vista de meus olhos, porém a pulsação que emanavam de todas as direções me diziam que estavam lá, no máximo cinquenta deles, talvez mais, porém hoje eu não sentia nada disso, eu não sentia a pulsação, absolutamente nada.
  Os lobos eram outra lacuna em meus planos, pensei e pensei, ainda assim não tive uma ideia suficientemente inspirada para vencer esse obstáculo.
  Me coloquei de pé, olhando-me no espelho comprido, saia com fendas até o início das coxas e uma blusinha com um decote profundo tudo em jade e preto, às vezes eu passava mais tempo com a blusa de Dorian em mim somente para me sentir mais vestida, porém essa roupa, dentre todas as outras, eu gostei.
  Ao deixar o quarto e me entregar aos corredores a sensação do vazio, do nada, pulsando me deixou com frio sob a pele, um tão profundo que nem aquele calabouço estúpido sob a casa me fez sentir durante a minha estadia lá.
  Meus pés, de repente pararam de se mover, afinal havia ali uma pulsação.
  Quando isso começou? Quando comecei a sentir essa energia constante como música? Eu não sei quando, talvez estar sempre com pessoas tenha feito essa pequena manifestação do que seja lá qual fosse a magia dentro de mim passar batido. Mas depois que se foram, agora que estava ali sozinha com a falta desse "ruído" aquilo me deixava desconfortável, estranha, sozinha demais, de novo.
  Me prendi a essa sensação, essa vibração mínima e tão frágil nesse mar de inatividade, e foi se aproximando e aproximando.
  — Pare de ser louca Liana — resmunguei.
  Voltar a me mover afastou a vibração solitária, eu a deixei ir, talvez fosse um dos lobos ou qualquer outro animal por perto.
  Desci as escadas com o frio penetrando meus pés conforme pisava no mármore gélido e liso.
  Me sentei à mesa da cozinha com um pedaço de bolo e um copo de leite diante de mim, Ana era mesmo uma cozinheira talentosa, o bolo era ainda melhor do que a média, macio e doce mas não ao ponto de me deixar enjoada como aquele que comi uma noite em um festival na companhia de Lana. Eu era criança e uma que foi criada comendo frutos e carne de caça, ao colocar doce em minha boca senti a explosão dentro de mim, uma hora depois mal conseguia andar por mais de um metro sem colocar as tripas para fora.
  Percebi que um sorriso permeava meus lábios e me assustei, larguei o pedaço de bolo pela metade me afastando cuidadosamente, eu não queria ficar me lembrando, não de Lana, não assim, não com esses pensamentos.
  Joguei o resto do bolo fora. EU JOGUEI FORA.
  Passei minha vida inteira racionando alimentos, mesmo nos meses em que caçar era como andar para mim e fartura enchia nossa geladeira em carne eu jamais as joguei fora, eu as comia, todas elas, e dividia ou vendia, mas nunca joguei comida fora.
  Era tão errado, um peso cresceu em minha barriga, um buraco maior do que qualquer fome que já senti.
  "Então essa era a sensação", pensei.
  Me afastei da lixeira, para mim era a prova de um crime contra mim.
  Sim, eu estava sendo estúpida, mas olhar para trás para meu passado, pensar que se há alguns meses alguém me dissesse que eu faria algo assim...
  Talvez daqui há algum tempo eu volte a passar fome de novo se conseguir fugir daqui, certamente vou estar sem um tostão e de repente eu pense nesse bolo.
  Batidas.
  A oscilação pulsava muito próximo de mim, sob meus pés.
    Não era Dorian e tampouco Ana.
  Embora Dorian tivesse simplesmente eliminado todas as suas regras estúpidas ele manteve apenas duas, e uma delas era não receber ninguém, atender a porta ou falar com visitantes.
  Outra sequência de batidas, frenéticas, com um toque de desespero, o som reverberou as paredes, andei lentamente até o saguão, as vibrações da pessoa do outro lado era uma frequência tão carregada.
  Minha mão girou a maçaneta com cuidado.
  O homem do outro lado tinha olhos colericos e as escleras avermelhadas demais para ester sóbrio, inclinei o rosto aguardando suas palavras.
  — Dorian? — o timbre de sua voz era embargado, e a garganta oscilou, quase como se as palavra não quisesse sair.
  — Hã, boa noite, ele.. ele não.. — os olhos mudaram, adquiriram um fulgor ardente de satisfação.
  Dorian não estava, mas ele parecia saber disso.
  As mãos ao lado do corpo se reviravam, seu cabelo escuro foi soprado pelo vento e minhas narinas absorveram o odor de magia poderosa, não elementar como a de Dorian ou como a de Ana, era diferente.
  A palavra perigo pairou entre nós, e eu apenas fiz a coisa mais lógica a se fazer, empurrei a porta de novo e girei a chave trancando-o do outro lado.
  Caminhei rapidamente até a cozinha, lá não pensei duas vezes antes de puxar uma faca do conjunto de faqueiros.
  Os lobos continuavam em um silêncio eterno, e aquele silêncio era tão vasto e tão palpável, não sabia se estavam vivos. Essa noção foi o percursor para desespero penetrar em minhas veias e meu coração bater com tamanha violência que levei a mão ao peito em uma tentativa inútil de fazê-lo se acalmar.
  Um estampido rompeu o ar da noite. Abaixei contra a bancada da cozinha, o cabo da faca era meu barco em meio a esse mar infinito de medo e receio.
  — Dorian? — ouvi-o repetir, logo depois do clique da pistola sendo engatilhada.
  Cobri minha boca, impedindo que minha respiração acelerada entregasse minha localização.
  — Senhorita caótica? — era uma segunda voz, uma segunda vibração, superior, maior e poderosa demais.
  Agradeci por ter tido o bom senso de cobrir a boca caso o contrário eu teria soltado um suspiro de resignação.
  — Garotinha, apareça querida — continuou a segunda voz, provocativa e desdenhosa.
  A vibração dos passos seguiu caminho até mim, lentamente, percebi que não tinha haver com hesitação, o homem poderoso queria me deixar amedrontada, queria que eu me sentisse encurralada. E estava conseguindo.
  Meus batimentos aceleraram, o cabo da faca se tornou grudento e escorregadio com meu suor.
  — Eu sei onde você está menininha — Murmurou, sua voz como um chilrear oceânico.
  As vibrações do intruso tinham apenas dois metros de distância de onde eu me escondia, a voz do primeiro homem ainda tinha o mesmo som embargado e hesitante, ainda perguntando por Dorian.
  Ele estava enfeitiçado, não sei por qual tipo de magia, talvez a da mente.
  Um calafrio desceu pelas minhas costas quando tirei a mão da boca.
  Travei o maxilar, então segurei a faca com ambas as mãos.
  Os batimentos em meu corpo era uma desordenada canção, tive certeza que em todo essa densidade silenciosa ele provavelmente ouvia-os.
  Me ergui abruptamente, sem pensar muito, apenas o fiz, pois ele sabia onde eu estava, e se eu fosse morrer ali eu não morreria escondida e tremendo de medo, eu morreria lutando.
  Avancei as mãos para frente com algum impulso, mas o homem desviou graciosamente do golpe, segurei o cabo da faca e fiz movimentos no ar, movimentação padrão com lâminas de curto alcance, eu conhecia cada golpe, meu braço realizava cada um com eficiência, mas não o bastante para cortar ele.
  Acabamos em uma dança estranha, onde a lâmina da faca passeava na direção do intruso e ele desviava lindamente de cada um.
  Observei seu rosto, a diversão, o deleite. O desgraçado estava brincando comigo, se quisesse eu já estaria morta no chão, mas pela postura, pela expressão e pela escolha de não fazer nada. Não era uma execução afinal, espertamente o homem estava me analisando, tentando saber se minha magia me respondia, querendo saber se eu a usaria contra ele.
  Parei.
  Nossos olhos se cruzaram, um olhar firme, um risinho repuxando os lábios, os cabelos negros curtos, a pele alva e olhos puxados castanhos profundos.
  — Quem é você? — indaguei entre os dentes.
  — Parece que a bonequinha de Dorian não sabe usar magia — ele observou, empertigando a postura e me avaliando.
  Eu ofeguei um pouco. Certamente estava precisando de algum exercício físico, só em alguns poucos movimentos e eu já estava cansada.
  — O que você quer?
  Ele inclinou a cabeça, ergueu uma das mãos ao lado do rosto e, de repente, uma vibração poderosa se ergueu ao meu redor.
  Cambaleei para trás ao sentir aquela pressão em meu crânio, se infiltrando para dentro. A faca deslizou pela minha mão em um comando que não passei para que meus dedos o fizesse.
  A pressão ficou forte, o mundo girou em cores difusas e coisas disformes.
  Uma leve vibração reverberou meu cérebro e de repente não havia mais pressão alguma, somente silêncio.
  O homem ficou boquiaberto, a surpresa marcando suas feições bonitas. Em outras circunstâncias eu poderia apreciar aquela beleza indescritível.
  — Parece que seu dom repele o meu  — preferiu ele, sorrindo largamente — acho que terá que ser do jeito antigo.
  A postura do intruso mudou, assumindo posição de combate, a expressão confiante cheio de arrogância, ele já estava cantando vitória, e ganharia realmente. O pensamento fez meu corpo tremer conforme firmava meus pés no chão e me posicionava.
  — Sua postura é terrível — disse ele para mim.
  Me movi primeiro, avançando com um soco armado, ele desviou me fazendo cambalear, para frente.
  A dor em minha coluna me lançou contra a parede, completamente carente de ar.
  Me forcei a me mover, quase não desviei de seu soco, mas a rasteira me atingiu em cheio.
  O baque que meu corpo provocou no chão chacoalhou meus ossos.
  O rosto do homem pairou acima de mim, as mãos dele pressionaram minha cabeça e um tsunami de sua magia penetrou em meu crânio, poderoso. O mundo ficou trêmulo e impreciso demais. Ouvi meu próprio grito como se estivesse a metros de distância, isso se realmente eu estivesse gritando.
  A pressão perfurou um ponto profundo da minha mente, como se uma faca de lâmina fina estivesse cravada no centro da minha testa.
  Eu a senti, senti a magia dentro de mim, um pequeno broto ainda tão imatura, incapacitada e muito distante de sua verdadeira proporção.
  Ela emanou de mim, de cada poro da minha pele e principalmente da minha mente, senti o mundo adquirindo um tremor, o chão sob mim foi abalado, talheres, porcelanas e algumas coisas de metal caíram no chão, madeira se partiu e choveu pó brilhante, como neve fina e delicada.
  O intruso já não estava acima de mim, o corpo dele tinha ido parar do outro lado da cozinha, ao pé da pia, trêmulo, talvez tendo uma convulsão, mas ele segurava a cabeça e se contorcia de dor, os berros imprecisos demais para minha audição meio abafada captar o quão alto eram, mas eram gritos de agonia, tive certeza.
  Me ergui, as mãos cobrindo as têmporas que ainda sentiam aquela pressão invisível.
  Risos, abaixei as mão e me voltei na direção do riso de escárnio, mas fui recebida com um soco.
  Caí no chão estatelada.
  Era uma jovem mulher, rechonchuda e bela, belamente perversa eu diria.
  — Acho que subestimou ela irmãozinho — disse ela continuando a rir, não de mim mas do homem caído.
  A nova intrusa ergueu a mão, a pressão, antes em minha mente, agora vinha em meu corpo, me grudando no chão com força.
  Não conseguia mover meus braços ou minhas pernas, não consegui abrir minha boca para berrar em desespero quando a mulher retirou uma faca de seu boldrié e veio até mim.
  A faca deslizou de sua mão, era como se o vento a movesse, mas não, seu dom não era do elemento ar como o de Ana, era outra coisa.
  A faca fantasma se aproximou de mim, o gume rastejou pela minha pele sem me cortar, mas essa não era a intenção, a mulher queria me mostrar que eu só não estava morta pois ela não queria.
  Engoli em seco.
  — Nik, não seja tão frouxo, levanta da porra do chão — ela reclamou para o irmão.
  As vibrações me diziam duas coisas, uma era que o tal Nik havia parado de te convulsões, e duas, haviam mais cinco outras pulsações além dos três primeiros intrusos.
Movi meus olhos ao ver a sombra do invasor de mentes. Ele limpou a boca e me perfurou com o olhar, então seu pé se move e eu senti a dor de um chute em minha barriga, tirando momentaneamente o ar de dentro de mim.
  — Vagabunda — rosnou.
  Não consegui nem sequer gemer de dor, a pressão em minha boca aumentou quando tentei gritar, como uma mão enorme.
  O medo estava de mãos dadas comigo, e logo o terror me abraçou. Pois ali estava eu, mais incapacitada do que jamais estive na vida.
  Outro chute, e mais um.
  Lágrimas escorriam pelas laterais do meu rosto. A dor cantava em cada músculo abdominal, e aquela pressão invisível sobre mim só fazia me apertar com mais vigor quando eu tentava me mover.
  — Chega Nik, vamos — a mulher disse.
  O telepata continuou a me olhar fulminante, mas obedeceu a irmã.
  Busquei em meu âmago, em cada câmara mais profunda dentro de mim aquela magia, mas ela estava frágil demais, meu dom nem havia estado em seu poder total e eu o esgotei, eu não podia o conjurar, não agora, então eu esperarei.
  Meu corpo se ergueu, tão leve e rígido como uma tábua.
  A mulher bonita pegou sua faca e a devolveu para o lugar pertencente, então tirou dois braceletes com grilhões curtos de trás das costas.
  Minhas mãos se moveram para trás do corpo, sem o comando do meu cérebro, apenas o fez quando a intrusa acenou a cabeça, elas simplesmente foram puxadas por essas mãos invisíveis.
  Bile subiu pela minha garganta.
  O grilhões apagaram tudo, me deixaram em uma densidade de nada novamente, não havia mais vibração, não havia mais magia querendo emergir. Nada.
  Solucei, não sei como, mas eu consegui emitir o som.
  Nik olhou para mim, sorrindo, então lançou um olhar pelo canto do olho para a companheira, irmã.
  — Nika?
  — Pode fazer as honras — disse ela a ele, virando o rosto para não olhar.
  O irmão da mulher se posicionou diante do meu corpo estático, um risinho de prazer repuxou os lábios.
  A mão dele veio como um raio veloz e furioso em direção ao meu rosto, o soco foi tão absurdamente forte, um lampejo de dor e ardência veio conjuntamente com o som de algo quebrando, um osso, meu osso. Porém eu não me movi, somente as lágrimas queimaram e desceram em fileiras infinitas rumo ao mármore que meus pés mal tocavam e o sangue fervoroso, talvez do meu nariz.
  — Nik, eu falei já chega, apaga ela porra! — rosnou a irmã para o irmão.
  O intruso soltou um ruído de descontentamento. As mãos dele percorreram meu rosto, ele apertou a parte onde fui nocauteada e eu quis morrer a sentir aquelas ondas de dor que vieram da região, e então aquela pressão voltou para minha cabeça, se agarrou onde pôde, ela perfurou minha mente.
Desta vez nenhuma energia provida pela minha magia veio me salvar, eu caí, cai nos braços do nada, da escuridão, eu caí.

Chamas De Inverno (PAUSADO)Onde histórias criam vida. Descubra agora