Capítulo 9

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  Festa, quanta estupidez.
  Me indignei, observando a parte da carta do vil senhor daquelas terras que fora escrita para mim.
  "Será minha companheira durante todo o tempo, enviarei as vestes que deverá usar assim que possível".
  Bom, as vestes chegaram e eu soltei um palavrão quando as vi, não somente para a festa, mas roupas o bastante para um ano, uma pior do que a outra.
  Ana dispensou todas as que estavam em meu armário, substituindo por aqueles vestidos exuberantes e ousados.
  Era madrugada, o céu tinha ainda o tom de ônix, lindo e estrelado com uma lua cheia e reluzente, mas não havia disposição em mim para voltar a dormir, não quando eu sonhava que estava novamente naquela cela, minha versão de quatorze anos na verdade, magra e frágil, o frio me abraçando forte, fazendo meus ossos doerem, e em minhas mãos o sangue rubro e brilhante do rato escorrendo, e eu o devorava, devorava um após o outro, após o outro, sem parar. Uma pilha dos restos crescia, mas não parei de comer, não parei até eu despertar arfando e buscando sangue em minhas mãos.
  Descidi que estava com fome, então rezei para ter sobrado os deliciosos biscoitos amanteigados de Ana na cozinha.
  Me preocupar em qual círculo de amigos Dorian andava ficaria para depois, talvez nem pensasse mais sobre e isso me pareceu o mais convidativo a se fazer.
  Estava me recolhendo para meus aposentos completamente farta de biscoito e leite quando ouvi o farfalhar de folhas, então passos do outro lado da entrada principal.
  Dorian empurrou as portas, e essas se abriram como se aguardasse sua chegada.
  Ele olhou para mim a meio caminho da escada e fechou a porta atrás de si.
  O olhar estava caído, exausto, em algum momento em sua travessia ele deixou a blusa e os sapatos para trás, e também um pente já que os cabelos estavam uma bagunça embaraçada e desalinhada, muito diferente do habitual, não olhei para seu corpo conforme ele andou até mim.
  O cheiro, o mesmo mas com algo mais além do suor e relva, cheiro doce, um cheiro de mulher.
  Recuei um passo olhando para a porta esperando ver uma linda acompanhante, mas só havia ele ali.
  — Devia estar dormindo — não me dignei em responder.
  — O que houve?
  Ele segurou meu cotovelo e me levou para o quarto, não o meu, mas o dele, um lugar em que não entrei, nunca.
   Era enorme, simples, limpo, sem ornamentos, apenas o dossel da cama entalhado com paciência e amor, as cortinas eram grossas e me fizeram pensar no quão odiada a luz era para ele, havia uma escrivaninha aninhada com papéis, uma mesa onde ficava próxima da sacada com vista para colinas verdes e frescas, imaginei que ele bebesse ali, pois havia um decantador e um copo próximos.
  Era aconchegante, mas sombrio e insólito.
  — O que houve? — Tornei a perguntar.
  — Apenas, fique aqui, comigo — olhei da enorme e macia cama para o rosto vulnerável dele, observei as linhas e me admirei encarando a barba por fazer, era tão humano, tão comum, nada de besta gigante e mortal, nada de fogo azul poderoso, apenas um homem quebrado.
  Não disse nada, mesmo que eu me negasse ele me pegaria e me jogaria ali, resolvi que queria parecer no controle e me deitei em um dos cantos.
  Fechei os olhos aspirando os aromas ao meu redor, madeira, livros, papéis velhos e álcool, combinava com ele.
  O colchão afundou atrás de mim e o braço de Dorian se largou ao redor da minha cintura, ele me puxou bruscamente, até que a parte de trás do meu corpo estivesse completamente em seu peito quente.
  Ouvi ele sorvendo o cheiro dos meus cabelos, senti o nariz contra o meu pescoço, no exato lugar onde a sombra de uma marca se mordida estava.
  — Senti sua falta — sussurrou conta a minha pele. Nada respondi, fechei os olhos e dormi.
  Dorian respirava devagar contra minha pele assim que acordei, o hálito quente e constante.
  O braço dele não se moveu quando tentei me desvencilhar, então continuei deitada, observando a cortina dançando ao sabor do vento.
  Dorian despertou puxando meu corpo a favor do seu, como se ele não suportasse a ideia de abandonar aquele contato, aquele abraço.
  — Vire-se — murmurou contra meu ouvido.
  Me virei. Nossos rostos a um palmo de distância, a respiração se mesclando e tornando-se uma.
  — Está cheirando a mulher — ele franziu a testa, mas então sorriu de um modo que sugeria culpa.
  — Eu nunca lhe contei Liana, mas sabe o que deveria ter acontecido quando a encontrei naquela floresta? — não vacilei, continuei o fitando nos olhos profundos e azuis.
  Ele não terminou a sentença, um outro dia talvez ele estivesse mais inclinado a me falar.
  Ele esticou a mão e tocou no arco da minha orelha, deslizando os dedos calejados por toda ela.  Após um longo período assim, deitados nos fitando, resolvemos que já era hora de levantar.

  A festa não iria ocorrer na residência, era em um salão propriamente feito para eventos, fiquei um pouco incomodada com isso, mas enfrentaria.
  A escova deslizava pelos meus cachos úmido, olhei através do espelho a forma cuidadosa que Ana a conduzia pelos fios de lã, e então acompanhei cada movimento ágil ao que ela trançava-os e como ela transformou a trança em uma coroa sobre minha cabeça, um ornamento dourado formando flores com pedras de safiras brilhantes ficou enrolando na coroa trançada, um lindo penteado, ressaltando minhas maçãs do rosto e expondo meu pescoço de um modo elegante.
  O vestido que coloquei era todo abertura e fendas, em contraste com o penteado elegante. Era de um azul noturno, reluzente como um céu estrelado, uma abertura cortava até a curva das minhas costas, as mangas eram compridas, o decote ficava todo coberto no entanto ambas as minhas coxas ficaram à mostra, um vestido sedutor e ousado demais.
  Ana prendeu em meu pescoço uma gargantilha com três diamantes enormes dispostos, sugando todos a luz brilhando vorazmente, em minhas orelhas brincos pesados de safiras.
  A maquiagem era escura e brilhante, meus lábios estavam roxos como amoras maduras, os cílios esticados, os olhos delineados e cor preenchia minhas maçãs.
  — Você está linda — Ana falou, segurando meus ombros enquanto me observava através do espelho longo.
  Sim, linda, nada daquela caçadora rebelde, uma mulher, eu era uma mulher.
  Dorian caiu em um silêncio contemplativo quando veio me apanhar no meu aposento. Parecia ter perdido a fala e ficou durante longos momentos  encostado no batente percorrendo meu corpo e rosto, a sombra bestial de sua outra forma cruzou suas feições, uma expressão territorial.
  Encolhi um pouco os ombros.
  Ele usava roupas elegantes, toda em tom preto fosco ornamentado com bordados safira, o cabelo impecável penteado para trás e o cabo elegante de uma espada despontando atrás do ombro, um objeto mais como ornamento do que como arma.
  Ele estendeu a mão para mim, um gesto elegante.
  Deixei que ele me conduzisse, sentindo todo o tempo os olhos sobre mim.
  Só conseguia descrever a diligência que nos aguardava no mínimo como espalhafatosa, jóias ouro e prata, não havia conforto nela, era um objeto para ser visto, admirado e apenas. Assim como eu estava agora, assim como passaria a noite inteira sendo vista ao lado de Dorian.
  O nervosismo empurrado com todo o empenho para aquela cova emergiu. Minhas mãos tremiam e suavam, o coração dentro do peito disputava com os galopes dos cavalos içando a carruagem.
  Observei o céu crepuscular, mas isso não fez meu corpo ficar menos quente e incômodo, não fez eu parar de mover os dedos dos pés dentro dos saltos absurdamente altos.
  — Devo esperar algo de seus amigos?
  — Eles não são meus amigos — disse rispidamente — se comporte como uma dama e fique ao meu lado o tempo inteiro, eles não se metem comigo e com o que é meu — essa é toda orientação que recebo.
  A diligência parou, me ergui subitamente, rezando para que aquele par de saltos não me derrubem, sorte a minha ter um excelente equilíbrio.
  Dorian ficou atrás de mim.
  Haviam outras carruagens próximas, nenhuma nem perto daquela coisa reluzente que era a nossa.
  O salão estava todo em elegância e vidros. Imponente e vivido a minha frente, com vozes e músicas escapando para preencher os arredores, um convite para diversão e fatura.
  Subi as escadas lentamente, meu coração uma canção retumbante, minhas pernas querendo parar e regressar correndo para a diligência gloriosa.
  Dorian segurou meu cotovelo, provavelmente sentindo o medo berrando em meus ossos.
  — Fique calma — sugeriu.
  O salão estava com um avolumando conjunto de nobres, tantas pessoas, tantas cores, tantos rostos, tantos olhos sobre nós.
  Todos se calaram enquanto realizavam uma mesura demorada, então descemos as escadas e as vozes se elevaram novamente, uma segunda música, no entanto os olhos continuaram em nós. Não, não em nós mas em mim.
  Estiquei a coluna e mantive as expressões faciais neutras.
  Há muitos anos eu havia ido em uma festa com Lana, onde ela bebeu conversou e até dançou, a verdade é que não sou acostumada com pessoas em grande quantidade, e não sou habituada também a ser tão descaradamente avaliada.
  Suspirei profundamente.
  Dorian me olhava. Entendi sua manobra, entendi seu jogo, mostraria a ele que também podia jogar.

Chamas De Inverno (PAUSADO)Onde histórias criam vida. Descubra agora