O farfalhar de correntes.
Mãos grandes e ágeis me empurraram em um colchão de maciez impossível, o cheiro de ferro e limpeza nocauteou meu olfato.
Senti algo gelado sendo acoplado em meus pulsos.
Movi meu corpo, só então abrindo os olhos.
Muitas piscadelas foram necessárias para me habituar novamente com a luz, quando desperta vi-o olhando em minha direção, olhos de homem, afiados, cruéis e satisfeitos.
Ao meu redor notei estar um quarto luxuoso, paredes de seixo arejado, janelas amplas com cortinas índigo sacolejando, objetos de boa fabricação, cuidadosos, preparados para receber um hóspede.
Estávamos em outro apartamento?
Me levantei, meus cabelos caíram como cascata em meus ombros, gelados, molhados, uma blusa branca de algodão acariciava minha pele. Crispei os lábios, eu não estava com roupa de baixo.
— Onde estou? — O homem repuxou os lábios.
Me recordei imprecisa dos eventos, talvez do dia anterior, a invasão, as fadas e a mordida.
Levei instintivamente a mão para cobrir o ferimento, som de ferro. Mas precisava primeiro saber sobre o ferimento. Descobri que a mordida estava coberta, cuidada. Ele não faria isso, mas quem?
Ergui ambas as mãos observando os braceletes brilhantes ligados a correntes grossas e resistentes.
Deixei ambos os braços caírem para os lados do corpo, soltando um suspiro de resignação.
O cheiro deste lugar era diferente, era diferente demais, o quanto nos afastamos da nossa última parada?
— Liana — Chamou, levando minha atenção até seu rosto — Tem algumas coisas que precisam ser esclarecidas.
Assenti, enquanto um tapete invisível era arrancado sob meus pés, eu caí em uma realidade dolorosa, difícil de acreditar, eu sabia, sabia que eu estava no destino que ele almejava, eu estava depois do mar em outro continente.
— Olha pra mim — Nem me percebi descendo o olhar para um tapete alvo felpudo — Você vai me chamar de senhor, se me responder ou tentar fugir vai descobrir que posso ser muito impiedoso — Estabeleceu — Quando eu receber visitas você não vai falar se eu não permitir, não vai comer se eu não permitir não vai nem tomar banho sem minha permissão.
Aquilo era ridículo, um absurdo.
Meu peito deu um lampejo fugaz com uma ânsia de respondê-lo, mas mordi o lábio inferior e baixei a cabeça.
— Liana, se eu pedir pra você olhar pra mim mais uma vez...
— Desculpa — Disse, baixinho, levantando mais uma vez os olhos para seu rosto.
— Minha governanta trará a lista do que você deve fazer — E dizendo isso deu o assunto por encerrado.
Bateu a porta ao sair.
Deitei novamente. Lágrimas.
Por que estava acontecendo aquilo comigo? O que eu havia feito?
Minutos se tornaram horas.
A porta foi empurrada, e por ela atravessou uma mulher magra ao ponto de parecer adoentada, os cabelos escorrendo pelo corpo em um véu negro, mas o rosto era brando e até simpático.
— Olá senhorita, desculpe, não tive tempo de comprar roupas adequadas, não sabia exatamente suas medidas — Falou — Ah, eu sou Ana, eu sei seu nome.
Ela estava feliz, estava feliz por me ver ali, não se importou com as correntes, ignorou as lágrimas frescas no meu rosto e meus olhos inchados, apenas sorriu.
Não valia a pena pedir ajuda, ela era uma serva dele.
Estava mais próxima, segurando uma bandeja com carne de coelho, ervilhas e pão com geleia.
Pude ver melhor as feições, olhos pequenos, poucas rugas, alguns fios brancos longos se mesclavam ao negror brilhante dos cabelos.
Olhei a comida, apesar da fome não tive ânsia alguma por comer quando o prato foi depositado a minha frente.
— Senhorita — Começou, percebendo meu intuito de abandonar a refeição —, vai descobrir que meu patrão é um homem muito difícil de lidar caso não cumpra suas ordens.
— Troque a palavra difícil por cruel — Murmurei.
Ela afundou a parte do colchão em que se sentou.
— Coma, para seu próprio bem — O sorriso havia dado lugar a uma linha tensa.
Puxei o prato. Comi devagar, Ana me olhando discretamente. Observei atenta quando ela visualizou o curativo em meu pescoço.
Ela quem cuidou de mim, tive certeza quando seus olhos recuaram e olharam os próprios dedos longos e pálidos.
— Ele passou muito tempo na forma de lobo, décadas na verdade — Murmurou, a voz rouca, quase chorosa — Isso o afetou, fez seus modos de homem desaparecer deixando um lado animalesco e hostil, um lado que eu nem imagino o quão difícil deve ser de controlar.
Deixei o prato limpo diante de mim, observando como Ana esfregava os dedos.
Por qual razão estava dividindo aquilo comigo? Eu não ia sentir pena, não ia tentar enteder, só o que sei é que fui sequestrada, levada contra minha vontade e que contra a minha vontade eu continuava sob seu poder absoluto. Ninguém olhou por mim.
Continuei quieta.
Ana pegou o prato, tirou um papel do bolso do avental e me entregou.
— Suas tarefas e algumas regras a mais — Explicou.
— Obrigada.
— As correntes são longas o bastante para acessar todo o quarto, só não... — A governanta limpou a garganta, uma, duas vezes, e completou baixando a cabeça e se envergonhando em completar — Apenas não tome banho, o senhor Dorian quer fazer isso pela senhorita.
Um tremor. A memória de suas mãos rasgando minhas roupas, seus olhos sobre o meu corpo, as mãos dele em seu... Sacudi a cabeça.
— Ele quer me dar banho? — Ana estava com o olhar espantado, envergonhado.
— Sim, mas.. mas tentarei convencer ele eu prometo.
Dizendo isso atravessou o quarto, quando no umbral eu disse, instintivamente:
— Tenha uma boa noite — Vi os olhos negros brilhando, antes da porta se fechar.
Havia tempo, tanto tempo que não dizia isso, desde que minha avó se foi, desde que.. Não, eu não queria pensar neles, só tinha que pensar em voltar para casa.
Abri o papel.
As ordens de executar as tarefas da casa para ajudar Ana tomavam mais da metade da lista, o resto eram exigências mais específicas e peculiares.
Sempre tomar café, almoçar e jantar na mesa junto a ele, nunca falar com visitas ou sequer recebê-las, chamá-lo de senhor, dormir usando suas blusas, jamais sair para os jardins sem permissão, nunca trancar ou tentar travar a porta, jamais tomar banho sozinha e nunca, jamais em nenhuma circunstância tentar fugir.
Deixei a lista de lado me levantando pela primeira vez no dia.
Podia dizer que em todos anos que se passaram sendo uma caçadora eu nunca tive tanta energia acumulada. Escovei meus dentes, joguei água fria no rosto e voltei para o quarto.
As cortinas estavam muito bem seladas.
O tecido era leve e maleável ao toque. Quis abrir, mas o medo do que eu poderia ver tomou-me. Não queria ter certeza do que já sabia, queria me segurar a uma dúvida exígua pelo máximo de tempo que pudesse.
— É melhor quando está aberta — Sofri um sobressalto violento com sua voz repentina atrás de mim.
— Não quero abrir — Disse, abraçando meu próprio corpo, as correntes um peso extra muito incômodo.
Ouvi seus passos se aproximarem e voltei meu corpo na sua direção.
— Não quer perguntar nada?
— Você responderia?
— Você? — Inquiriu, em um tom de correção.
— Desculpe — Murmurei.
— Desculpe o que?
— Desculpe, senhor — Como me odiei por proferir tais palavras, mas eu precisava ser perspicaz, não era hora de bancar a emocionada desesperada. Eu ia jogar esse jogo.
Dorian quebrou ainda mais a distância entre nós, houve algo entre um suspiro e um rosnado quando ele observou o colar pendido no meu pescoço, um pingente prateado desgastado, a imagem de um dragão pequenino.
As mãos cheias de calos tocaram o objetos, segurando delicadamente entre os dedos. Uma peça sútil, que ninguém nunca reparava, que ele não removeu.
— Sinto o cheiro de macho nesse pingente — Arregalei, de modo efêmero, meus olhos — A quem pertenceu?
— Era do um amigo, senhor — Uma resposta vaga, um tanto incorreta.
— Amigo? — Repetiu, fechando os olhos e aspirando o cheiro com uma intensidade sedenta.
— Um antigo companheiro de caça — Corrigi, antes de suas exigências pela verdade viessem.
O toque sobre o pingente mudou, adquiriu peso e me pareceu que havia um desejo oculto de arranca-lo dali.
Não houveram questionamentos, exigências ou reclamações, Dorian apenas largou o objeto e deu um passo para trás.
— Esteja de pé às seis em ponto, não quero atrasos e nem desculpas.
— Está bem.
Ele se foi.
Olhei para baixo, o pingente estava ainda mais riscado e sempre quente contra minha pele.
Eu mesma já o havia tirado várias vezes, o guardava na cômoda só para depois pegá-lo novamente, uma vez até o lancei ao rio e por uma sorte gigantesca consegui recuperar o objeto novamente.
Eu queria poder sentir o cheiro de Nix nele, nem que uma pequena fração daquele cheiro maravilhoso de inverno e lavanda, só por alguns segundos, me lembrar, lembrar do seu rosto, eu não tinha muita certeza de como eram mais suas feições, nem se o reconheceria se voltasse a vê-lo.
Tudo o que Nix tinha deixado para trás fora um colar ao redor do meu pescoço e uma promessa de retorno.
Cinco anos haviam se passado, ele não voltou, talvez simplesmente tenha encontrado o rumo tão almejado para sua vida, talvez nem a lembrança de que um dia conhecera uma caçadora de cachos negros, aljava tricotada e arco talhada com desenhos do céu noturno existisse mais em sua mente.
Deixei-me cair nos lençóis.
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Chamas De Inverno (PAUSADO)
RomanceUm momento pode mudar tudo. Liana, uma jovem caçadora solitária que vivia na floresta há muito sozinha, vê-se com o destino ligado a uma fera que se passa por homem após ser atacada por uma besta sombria. O medo passa a ser o novo aliado da jove...