Capítulo 7

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  Estava dentro de uma banheira com água quente, o que foi o calor para mim durante aquela semana naquela cela se não um sonho distante, mas ali estava eu sentada em uma banheira com água deliciosamente quente.
  Descobri que meus lábios estavam rachados e que de fato o frio feriu meus pés, arrancando pele conforme eu caminhava de um lado para o outro.
  Não ousei falar, a figura imponente e fria na soleira encostado com o ombro no batente me devorava com os olhos apáticos, esperando, talvez, algum xingamento ou protestos.
  — Você foi corajosa, enfrentou aquela semana sem pedir ajuda — Ana afinal estava lá para outra função a mais também — está tão disposta assim a proteger esse homem? E afinal, o que ele fez por você a não ser ir embora?
  Aversão e repulsa por suas palavras inundaram-me, eu teria gritado, teria dito todos insultos que eu me esforçava em suprir.
  Inspirei profundamente, um erro, ele notou como a frase me irritou, como me atingiu, acabei de dar uma arma para que usasse contra mim. Tola, eu era um tola.
  Nix estava em sua própria caminhada, com a promessa de Lana eu mesma estaria em minha própria jornada muito em breve, todo o silêncio tão barulhento, toda a saudade transbordante, tudo iria desaparecer e eu estaria fazendo algo, almejando algo e lutando, não por sobrevivência mas por propósito.
  — Você deveria facilitar as coisas Liana, para seu próprio bem — Encolhi com mais afinco o corpo, era dolorosa a sensação de que a qualquer instante a água quente e confortável se fosse e eu despertaria em uma cela fétida com meu corpo rangendo e tremendo com o frio brutal — Eu vou descobrir quem seu amigo é.
  As palavras me arrancaram do estado vazio, e me permiti encarar o rosto presunçoso.
  — O que quer de mim? — pelos deuses, minha voz era um sussurro rouco e falhado, há quanto tempo não a usava?
  Dorian me olhou, os lábios ficaram colados antes de se curvarem em um sorriso envenenado e triunfante.
  Eu queria ser ríspida, cruel, queria berrar, xingar e esbravejar, queria que o chão, que o mundo sob meus pés rugisse e tremesse, parecia isso o certo, isso o que meus sentimentos queriam fazer, mas empurrei aquilo para aquele lugar sombrio para onde eu empurrava todos esses ímpetos, para onde eu enterrava tudo em uma cova funda com lugar para mais, para muito mais.
  — Eu não tenho nada, não fiz nada, aquela dúvida que minha avó e ele me diziam precisar ser paga é um farsa e sei disso, se vou ficar aqui, rezando por misericórdia para os deuses apáticos, fingindo ser quem não sou para você, sofrendo com frio e temendo tudo todo o tempo sem ao menos saber o porquê, é só me responder a meeda do porquê de me condenar, o porquê disso? — a súplica mais dolorosa que saiu de mim, como um rombo no peito, uma dor afiada e fria como uma lâmina de gelo ferindo o peito.
  Dorian se aproximou, o rosto inexpressivo.
  — Conversaremos sobre isso no jantar, se apresse — Dizendo isso virou e se foi.

  Eu quis recuar do toque cauteloso de Ana a meu rosto poucos minutos depois do banho, mas não o fiz, empurrei o orgulho e a mágoa para aquela cova e me permiti sentar diante da penteadeira.
  O espelho refletia a pior aparência que já tive na vida, meus olhos estavam fundos, manchas feias e escuras estavam abaixo deles, meus lábios rachado e pouco cheios, o começo da magreza deixava meu rosto fino e sem vigor, os ossos visíveis em meu cólon, os cabelos negros estavam aceitáveis, mesmo que molhados e minha pele negra antes ardente e brilhante estava apagada e cinzenta, desviei os olhos observando o chão, as cortinas, o nada enquanto Ana terminava o processo de me pintar para não parecer tão miserável.
  — Liana, sei que tem todos os motivos para me odiar mas... mas — observei o rosto de Ana hesitar pelo reflexo no espelho — eu o criei, quando a mãe deixou ele e o irmão eu os criei, Don se foi mas Dorian ficou e eu o amei como a um filho, ele me amou como uma mãe. Como mulher e como um ser eu o odeio pelo o que ele está fazendo com você, mas como mãe... — ela não terminou, não precisava, seu olhar dizia tudo.
  A história da mãe de Nix em como ela salvou o filho e em como Lana amou a filha eram o suficiente para eu não precisar especular qual era o nível do sentimento, não respondi, apenas baixei a cabeça e encolhi levemente os ombros em concordância e aceitação.
  A governanta se foi, como um vento veloz.
  Estava mentindo pra mim mesma quando disse que não estava fervilhando de curiosidade pela frase dita por Dorian naquele banheiro antes de me deixar sozinha, mas ao estar no topo das escadas observando o andar debaixo percebi que cada pedaço de mim, inteiro ou em estilhaços, estava ansiando pelo jantar.
  Desci vagarosamente, tanto por não confiar em minhas forças tanto por estar vendo o mundo impreciso, fome, certamente.
  Me mexi desconfortável na cadeira, sem me dar o trabalho de ficar altiva e forte naquela noite, talvez em nenhuma outra a partir de hoje.
  O prato estava posto, cheiroso fazendo água se acumular na minha boca.
  — Coma — ordenou.
  Eu o fiz, não devagar, não educada usando os talheres, apenas enfiava o máximo de comida na boca, engolindo com dificuldade apenas para comer mais e mais.
  Estava com a barriga farta quando me permiti levantar os olhos para meu companheiro, talvez ver a repulsa e aversão, mas não encontrei nada ali, a não ser um interesse sólido e um brilho escasso e limitado naquelas iris metálicas sempre tão vazias e cheias de ira.
  Arrotei alto para completar a apresentação, e podia jurar que um sorriso permeou seus lábios.
  — Eu quero saber — ordenei, não me dando o trabalho de ser educada.
  — Vejo que alguns dias no calabouço lhe fizeram bem, não a aparência é claro.
  Enterrei mais ofensas e ódio, sustentando o olhar firme dele — vou me lembrar de não a castigar de modo que afete tanto seu bem estar físico.
  Bile subiu pela minha garganta, desgraçado, desgraçado sórdido.
  — Apenas me conte.
  — A sua linhagem, a linhagem da família de sua mãe é composta por mulheres com habilidades, mas essa habilidade de alguma forma ficou adormecida dentro delas década após década, até que você nasceu — afastei alguns cachos molhados do ombro.
  Era verdade, eu sabia, sabia disso, a verdade que Lana e Nix nunca dividiram comigo sendo contada pelos lábios do ser mais sórdido que já conheci.
  — Quais tipo de habilidade? — Consegui perguntar.
  Dorian se concertou, ficou altivo e lívido, um rei, um rei observando e ponderando as vantagens nessa conversa, talvez fazer eu me sentir pior, mas... não, aquilo era um pedido de desculpas, por isso a falta das correntes em mim, por isso o vestido novo e mais leve, por isso o jantar com purê e carne fresca, meus favoritos, era um pedido de desculpas, um que eu não aceitaria.
  — Não sei exatamente — respondeu por fim, dando de ombros — Talvez magia caótico antiga — Não respondi, e com isso pude transpassar a ele que eu sabia sobre magia, um pouco — A sua magia está presa, câmaras profundas em sua mente a impede e a repele, cortesia de sua amada avó aliás, mas ela deve saber que selar magia assim não é nada saudável, no dia em que for liberta será uma caótica explosão de poder, derrubaria uma montanha em minha opinião  — não movi nenhum músculo, absorvendo suas palavras, a verdade.
  Uma parte de mim já sabia daquilo, e aquela pressão forte em meus pulmões, aquela que às vezes me impedia de pensar, se anuviou, desapareceu como uma nuvem de tempestade abrindo espaço para o sol.
  Eu não sabia do quanto precisava daquela confirmação, do quanto precisava da verdade, mesmo vinda de Dorian.
  — Sabe Liana, parte de mim sente que você já sabia — Observou, revirando um copo entre a mão enorme, um líquido cor de caramelo.
  — Eu não sabia, ao menos não tinha certeza — respondi, observando a bagunça de comida que deixei na toalha branca com fios dourados enfeitando a mesa, eu era uma selvagem, mas não me importava de o ser, era quem eu era e não aquela coisa contida que segurava garfos com delicadeza e comia devagar.
  Ana veio em silêncio, recolheu e lavou a louça, limpou a minha sujeira e se retirou.
  Senti a nuvem negra sobre nós quando Ana se foi, preferi fingir que não vi o olhar de reprovação dela para o chefe e como isso pareceu atingir Dorian em um lugar profundo em sua alma sombria. Ana tinha poder sobre ele, mesmo que pequeno, mesmo que sem muita autoridade ainda estava ali.
  Fiquei mal por não ter lhe dito nenhuma palavra naquele dia e nos outros, dizer que eu entendia mesmo que de fato não entendia nada.
  Ela provavelmente deve ter implorado, mas isso não foi o suficiente e aquele desgraçado me deixou apodrecendo lá embaixo, sozinha no escuro e no frio.
  Por impulso agarrei uma garrafa de vinho que frequentemente ficava sobre a mesa intocada, de enfeite, e depositei em uma taça que então levei até a boca.
  Dorian acompanhou cada movimento meu enquanto eu bebia a primeira taça.
  Já havia bebido antes, cerveja que Nix me deu certa noite, amarga demais e detestei, mas bebi, porém aquela bebida, aquele vinho era muito saboroso, doce e cítrico, beijava e adorava minha língua, eu amei, adorei e beberia ela inteira só para esquecer, esquecer do frio eterno em meus ossos naquela semana, esquecer do cheiro pútrido em minhas narinas e a escuridão que se movia conforme quase todas as tochas se apagavam de vez em quando, e se acendiam magicamente momentos, minutos, horas ou dias depois, eu não sabia quanto tempo, mas aquilo me engolia, as grades de aço, aquilo era um pesadelo que só parecia um tão atroz e cruel agora que eu estava ali encima, aquecida, farta, na luz e bebendo algo maravilhoso. Eu vivi em um pesadelo, e só estava me dando conta agora.
  — Você devia me obedecer — disse, um tom vago e sem malícia, de certo eu estava com uma expressão que entregava onde exatamente estavam meus pensamentos.
  Traguei mais alguns goles de vinho, não dando atenção a ele, olhando os ferimentos em meus dedos, dos momentos em que eu esmurrava as grades de aço, por diversão, para ter o que fazer, e por desespero.
  — Fale comigo.
  Levantei os olhos para sua face fria e lívida.
  — Eu odeio ratos, tenho medo do escuro desde que era menina e eu odeio sopa, odeio muito — ríspida, eu fui ríspida pela primeira vez, e isso me deixou com um gosto ainda mais doce na boca, um peso a menos nos ombros.
  Dorian me encarou e seus olhos reluziram com aquele sinal de ódio pela afronta, mas além de remexer a mandíbula ele não se protestou em nada. Por quê?
  — Ninguém gosta de ratos — disse, dando de ombros.
  — Já precisou comer um rato para sobreviver, por ser a única comida que conseguiu encontrar, cru e frio? — disparei, não me permitindo sentir vergonha, ou repugnância, apenas para ferir ele, se houvesse algo a ser ferido.
  Ele sorriu para mim, não com o escárnio, não com desprezo mas com frieza.
  — É algo comum seu, achar que só você sofreu nessa vida garota? — não quebrei o contato visual, o olhava fixamente, voluntariamente.
  — É algo comum seu, trancar pessoas no frio e no escuro por não conseguir o que quer delas? — retruquei, e pude jurar que os olhos dele se tornaram elétricos e que garras substituíram as unhas.
  Eu o irritei e aquilo foi mais saboroso do que qualquer vinho.

Chamas De Inverno (PAUSADO)Onde histórias criam vida. Descubra agora