Capítulo 17

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  — Venham cá meninos, sentem-se aqui que lhes contarei uma história — falava a voz rígida em um tom doce para meu irmão e eu.
  Don estava agora pulando pela poltrona da sala de leitura de nossa mãe, agitando uma espada de madeira no ar como se estivesse executando cortes. Eu baixei a cabeça para meu livro, observando as figuras dos guepardos das montanhas sombrias.
  — É uma história de aventura? — indaguei, cabisbaixa.
  — Dori, hoje é o dia de Don lembra-se — disse ela, com censura.
  Don parou com seus incessantes movimentos, olhou para mim com triunfo no rosto, que em nada se parecia com o meu, e foi ter na saia de nossa mãe.
  — Achou um bom? — Givina afagou os cabelos escuros dele, sorrindo com gentileza.
  — Achei um que é verdadeiro — Don sorriu.
  — Um dia serei um homem de honra e desposarei uma linda princesa como minha — falou Don, sorrindo daquele modo engraçado que ele fazia quando sonhava com essas coisas melodiosas.
  O garoto se sentou no chão, deixando de lado a espada curta de madeira, minha mãe voltejou os olhos azuis afiados para mim, um comando silencioso que logo tratei de obedecer.
  Ela cruzou elegantemente as pernas, abrindo um livro de capa sombria, não aqueles feito para entreter crianças, era um livro para adultos sobre sangue e morte e amores ruins. Era isso, amores ruins? Como o dela e o do nosso pai.
  Tive o bom senso de não interromper, pois parecia que Don ia explodir de emoção a meu lado.
  — Sabem o que é ser eternal de alguém? — indagou ela, rindo graciosamente da própria questão. Don e eu sacudimos freneticamente a cabeça — Bom, eternal é amor, não um amor comum, é um toque na alma, na essência, ligando você a outra pessoa...
  — Como você e o papai? — indagou Don, interrompendo-a. Minha mãe sorriu, óbvio que sorriria para Don, ele era seu ponto fraco, o amava mais do que a tudo, a mim restava as migalhas de seu amor materno mesmo que eu fosse o mais velho.
  — Não — Givina revelou, sorrindo com tristeza — seu pai e eu nos casamos por motivos, para fins.
  — Por dinheiro e poder — falei, dando de ombros querendo voltar para meu livro.
  — Olhe como fala menino! — disse ela, entre os dentes retos e brilhantes.
  Não respondi nada, baixei a cabeça fitando minhas mãos trêmulas aguardando um golpe de sua mão, no entanto Don se colocou entre nós, apertou meu braço e soltou em seu tom manhoso que ela continuasse a história.
Givina não o desapontou e prosseguiu:
— Um eternal é o outro pedaço de sua alma, o amor mais puro que existe tão raro quanto a magia poderosa que vocês herdaram — falou ela, sorrindo com vigor para Don e me lançando um sorriso forçado.
  A voz de Givina foi tornando-se profunda e distante, como se ecoando por um longo túnel.
  — Nenhuma sensação é melhor do que estar um com o outro...
  A voz de Givina parou, levantei os olhos observando o rosto rosado, os cabelos loiros bem cingidos em um coque exuberante, o vestido turquesa abraçando as formas de suas pernas cruzadas e a mão pomposa apoiada no braço da cadeira.
  Uma rainha, sim, uma linda e cruel rainha.
  Don apertou meu braço, seus olhos fixamente cravados em meu rosto, com um teor de alarde e divertimento.
  — Ela é sua Dori, ela é sua e você não a honra — disse minha mãe, inclinando o queixo com repugnância.
  — Deixou ela sofrer Dori, eu seria melhor para ela como fui melhor pra mamãe, você a deixou sofrer — falou Don, sorrindo de um modo maldoso que não lhe era próprio.
  Givina sorriu cruelmente, inclinando o corpo esguio em minha direção até sua mão ornamentada por anéis tocar meu queixo, então falou próxima do meu rosto:
  — Sua eternal, ela é sua Dori, ela é sua eternal — a força do significado da frase me atingiu como um soco no estômago — O que vai fazer Dori? Ela sofreu por sua culpa, você a condena a sofrimentos, se lembra do que falei não é?
  Olhei confuso para Don, ele continuava com o sorriso cruel e presunçoso.
  — Ela pode não te amar, mesmo que seja sua eternal — falou meu irmão, rindo — Você foi cruel com ela, a trancou no lugar frio que o papai nos deixava, você tentou agarrar ela e foi cruel.
  Fechei os olhos, escutando o eco de suas risadas.
  Meu peito sangrava, eu não queria ouvir isso, eles tinham razão, por qual razão Liana me amaria? Eu nem consegui salvar ela do sequestro que foi a porra da minha culpa, ela se salvou sozinha. Não, ela era minha, somente minha.
  ELA ERA MINHA, eles estavam errados.
  Abri os olhos.
  Givina estava de pé, Don a seu lado adulto, com seus trajes asderiano de combate, a verdadeira divindade da guerra, imponente e redentor. O sorriso em seu rosto era o de um herói, em seu peito o emblema de Cárcia o elegendo como senhor das terras do nosso pai.
  Me ergui lentamente, percebendo que meu corpo não era mais o de uma criança.
  — Eu serei melhor para ela Dori, serei melhor para as terras da nossa família, eu sou melhor — falou Don, sorrindo e olhando para um ponto atrás de mim.
  Virei-me lentamente.
  Liana estava parada na entrada da sala, usava um lindo vestido branco de noiva, com uma saia reluzente e bufante e um decote incrustado por pérolas, um véu em sua cabeça e os cachos caindo lindamente pelos ombros. Ela apertou com força o buquê de camélias em seus dedos decorados por anéis.
Os olhos dela fixos em Don e seus lábios curvados em uma risada sútil.
  Fiquei pasmo e enojado. Era amor em sua expressão.
  Ela passou por mim a passos sutis, devagar e graciosa como já a vi fazer centenas de vezes.
  A mulher nem sequer lançou um olhar para mim, seguiu em direção a Don estendendo os dedos para ele.
  Meu irmão ignorou o gesto e a abraçou com força, suspirando feliz.
  Liana retribuiu o gesto.
  — Liana?
  Algo se quebrou dentro de mim, tudo explodindo, eletrizando meus nervos.
  A caótica me olhou, enrugou o nariz em um gesto de desdém e falou:
  — Eu pertenço a ele, ele é melhor, ele me amou, não me machucou e nem foi ruim para mim, ele não fez eu ser torturada e ele quem me fará feliz — o olhar de Don me cortou como uma lâmina.
  "Sim, ele era melhor para ela", pensei.
 
  Abri os olhos.
  Apalpei os lençóis e não senti o corpo de Liana junto a mim.
  Subitamente me lancei para fora da cama, olhei ao redor em frenesi, mas ela não estava lá, Liana não estava comigo.
  Puxei minha espada me conduzindo até a porta, quando minha mão se posicionou na maçaneta a senti virar pelo exterior. Dei alguns passos para trás vendo minha futura mulher entrar.
  Ela olhou para mim então baixou os olhos para minha mão ligada ao cabo da espada.
   Segurei seu braço e a puxei para dentro, fechando a porta atrás dela.
  Liana parecia assustada, observando ao redor em busca de alguma coisa fora do comum, quando não encontrou me fitou com uma pergunta nos olhos.
  — Não saia assim, nunca mais, não faça isso — falei, largando a espada no chão e a puxando para um abraço.
  — Fui buscar água, estava com sede — justificou.
  Liana se afastou e olhou para minha mão em seu braço, não foram precisos palavras para saber que não queria minha mão nela em um toque tão possessivo. Afastei meus dedos de sua pele.
  Observei seu corpo se movendo, usando ainda minha camisa e trajando calças largas que provavelmente encontrou em um dos armários.
  Ela engatinhou pela cama acomodando-se no mesmo canto que ocupou a noite inteira.
  Era nove da manhã, o dia estava quente e cheio de luz solar, mas isso não parecia atrair a atenção de minha parceira, muito pelo contrário, notei que as cortinas haviam sido puxadas limitando a visão do exterior.
  — Temos que ir — alertei, ela puxou as cobertas até a cintura, suspirando resignada.
  — Estou cansada, não sei o porquê apenas estou.
  Passei a noite inteira agarrado ao corpo dela, mal dormi observando-a, garantindo sua segurança, e cochilei somente para sonhar com Don e Givina, eu estava cansado demais e isso era um problema. Não poderíamos passar muito tempo nessa cidade e em nenhuma outra, eu precisava dela em casa protegida com o maior números de feitiços que puder conjurar.
  — Liana...
  — Só mais uma noite e então iremos, eu só quero ficar aqui um pouco, dormir um pouco — o aroma de sua melancolia tomou o quarto, mas era um cheiro fraco dominado em sua maior parte pelo nada.
  Tranquei a porta, olhando sem parar para minha Liana, ela não esperou minha resposta, em poucos minutos estava novamente ferrada no sono.
Ela passou o dia mole e sem motivação para deixar a cama, mesmo quando tentei a provocar ela não reagiu, Liana estava em um poço de nada, afundando nele lentamente.
  Aquilo estava longe do meu maldito controle. Moveria reinos, exterminaria cidades, incineraria  mundo para vê-la agindo com acidez, para ouvir suas reclamações e perguntas, para sentir seus sentimentos pulsando dela. Mas eu não podia controlar aquilo.
  Queria berrar, queimar e rugir, queria trocar de corpo com a fera habitando sob minha carne, no entanto sabia o que fazer, eu tinha que resolver, tinha que estar ali e a ajudar.

Chamas De Inverno (PAUSADO)Onde histórias criam vida. Descubra agora