— O que acha deste então — inquiri, mostrando a Dorian uma blusa branca curta e colada com bordados esmeralda vivo nas bordas.
Dorian puxou uma quantidade abundante de ar antes de dizer:
— Só por cima do meu cadáver — olhei a blusa, me lamentando por ter que deixá-la.
Com Dorian tudo era muito simples, ele comprava roupas "promíscuas" somente se ele fosse o único a me ver nos trajes, se decidia comprar algo do meu gosto para usar em locais públicos escutava esse tipo de frase.
Estávamos na décima cidade quinze dias depois de partirmos do vilarejo litorâneo com comida de fazer minha língua cantar, parei de tentar gravar o nome dos locais na quinta cidade, já que passávamos um dia ou dois em cada uma.
Dorian me incentivou a comprar um vestido todo fechado com botões horrorosos, mostrei a língua para ele e escolhi uma calça de couro e uma camiseta de algodão que deixava um pouco do meu abdômen a mostra. O lobo quase pulou da cadeira quando passei por ele usando o conjunto, ele tentou me persuadir a não usar as peças porém o ameacei sair nua se aquela não fosse as roupas que levaria.
A dona do estabelecimento olhou-nos com diversão, Dorian assentiu e pagou a tudo a contragosto.
— Poderia ao menos escolher algo para escondesse sua barriga — resmungou já perambulando junto a mim pelas ruas da cidade de terra vermelha.
Olhei ao redor, as pessoas nessa cidade, ou ao menos nesse vilarejo, usavam roupas parecidas, com calças e blusas de algodão, até mesmo as mulheres. Tinha que admitir que adorei o conforto que as peças me trouxeram.
— Deveria estar dizendo algo como "Liana, uau, esse couro valoriza muito bem a sua bunda". — olhei por cima do ombro no exato momento em que ele analisava meu traseiro, vi a mandíbula se movendo e uma expressão de desejo cruzar a face.
— Maldito couro — praguejou, baixinho.
Ao voltar-me para frente vi um homem magro com cabelos loiros de costas para mim, meus pés pararam de funcionar no mesmo instante, eu tremi sentindo meus nervos cantarem com a lembrança da eletricidade me percorrendo por dentro.
Gar, era Gar ali, de costas para mim esperando eu me aproximar para suas mãos profanas me tocarem me afundando em dor esperando para me levarem para outro calabouço onde tortura após tortura seria realizada em meu corpo.
Minha magia fazia carícias doces em meus ossos, como se para dizer "calma, estou aqui, calma, sou forte agora não há o que temer".
Me apeguei a ela.
Mãos me tocaram, quentes e enormes, saltei para o lado soltando um gemido de dor prevendo a onda de choque sendo descarregada em meus nervos, era Dorian.
Ele me olhou com neutralidade, mas o leve afiar de seus olhos me alertavam da preocupação o reverberando por dentro.
Busquei por Gar novamente, ainda de costas de frente para uma barraca mercadora.
— O que houve? — perguntou o senhor do fogo, voltando a me segurar sutilmente pelos braços.
— Gar — ofeguei, soltando um gemido. Apontei para o homem exatamente no mesmo momento em que ele se virou para nós. O rosto era redondo e liso, um garoto, era um garoto, ele nos olhou com alarde e decidiu que não queria passar perto de Dorian escolhendo o outro lado da rua terrosa.
— Liana, ei — a mão do lupino se posicionou na minha nuca — não é ele está bem, ele morreu, não é ele.
O abracei, não me importando com a multidão observando ao redor, apenas apertei meus braços envolta de sua cintura. Algumas lágrimas desceram silenciosamente pelas minhas bochechas.
O lupino apertou-me em um abraço, e a sensação foi mais poderosa do que qualquer palavra poderia ser.
Tentei fazer minhas pernas trêmulas se moverem, porém elas falharam miseravelmente e eu caí, Dorian me pegou agilmente antes de eu atingir o chão, me pegou no colo e começou a andar. Afundei meu rosto em seu peito, absorvendo o cheiro forte de lareira e mar que se tornava cada vez mais palpável.
Era uma droga ter medo assim, temer ver alguém que sei estar morto. Eu estava melhorando, os pesadelos deram trégua cinco dias atrás, eles, normalmente, me faziam acordar suando, Dorian prontamente me abraçava e me levava para o banheiro onde eu vomitava e chorava, como um rito estúpido.
— Ei, ei Lie, você tá bem?
— Sim, eu só fiquei um pouco... só fiquei apavorada — admiti.
O cheiro forte de madeira e lavanda alertaram-me que chegamos a nossa estalagem. Dorian falou com alguém em seu tom duro e frio que tão bem conhecia.
Continuei com o rosto enterrado em seu peito até chegarmos a luxuosa hospedaria.
Ele se sentou no sofá deixando-me ainda em seu colo, as mão apartaram meus cachos, meio soltos do coque, do meu rosto. Encolhi as pernas apertando o corpo dele rezando para aquilo não se dissolver em um sonho.
— Desculpa — murmurei — desculpa, eu não queria atrair atenção...
— Tudo bem.
Eu dormi ali mesmo, em seus braços em uma posição infantil, absorvendo o cheiro gostoso de sua pele.
Despertei abruptamente, esfregando as mãos em minha pele como se para me livrar dos cacos de vidro que Gar forçava em minha pele até ela se rasgar.
Levei um minuto para perceber que não havia cela, não havia Gar, não haviam grilhões e nem vidro.
O senhor do fogo não estava em parte alguma. O vômito disparou pela minha garganta, corri aos tropeços até o banheiro onde vomitei meu almoço todo na privada, tossi um pouco e as lágrimas vieram em um fluxo mais controlado do que o costume.
Voltei para o quarto após limpar minha boca e lavar o rosto suado.
Observei a janela. Era final de tarde e o céu estava em um azul escuro luminoso. Fechei as cortinas verde pinho.
Andei pelo pequeno apartamento admirando os vasos de plantas e o grande volume de móveis envidraçados.
Haviam flores na bancada em divisa com a cozinha e a sala.
Volto logo, dizia o bilhete grudado nos caules das camélias rosas, minhas flores favoritas.
Sorvi o aroma das flores e sorri estupidamente.
Fiquei parada tolamente diante da geladeira, sempre gostei de observar como a magia do gelo, criocinética, agia no compartimento. Serafina, a esperta, havia descoberto a capacidade de vinculação da magia com avanços mecânicos, era uma mulher humana comum e conseguiu os resultados após dez anos de falhas, mas ela nunca desistiu, a cada erro ela aprendia como acertar. Eu tinha um desenho dela em meu quarto, a admirava e queria descobrir algo tão incrível quanto ela um dia, saber como era ser grande mesmo sem magia.
Arranjei um vaso para o buquê, e fui me adiantar em recolher nossas coisas para partirmos.
Dorian voltou uma hora depois. Recolheu todos os nossos pertences em silêncio e enfiou em outra diligência alugada.
Seu silêncio e o leve curvar dos ombros evidenciavam sua embriaguez.
A diligência era pequena e escura, fiquei todo o tempo em silêncio recostada em um dos casacos de Dorian.
Despertei subitamente, bile queimando minha garganta.
Me debrucei através da janela e vomitei alguns goles de água, poucas lágrimas trilharam caminho pela minha bochecha.
A mão de Dorian deslizou pela minha cintura, o observei por sobre o ombro, olhos azuis elétricos encaravam-me.
— Lie, você tá bem? — voltei-me por completo para seu corpo, inclinei minha cabeça lentamente analisando-o — Seus olhos estão brilhando — disse ele para mim, as mãos apoiadas em meus quadris.
Abri a boca e fechei, pisquei os olhos e sorri lentamente.
— Estou vendo você, consigo o ver no escuro.
Dorian hesitou. Lambeu os lábios e baixou a cabeça.
Minha magia ou qualquer manifestação dela não era um tema muito frequente em nossas conversas, para ser franca ele nunca a mencionou ao longo desses dias de viagem.
— Sua segunda forma — murmurou.
— Eu terei uma? — inquiri, não contendo o entusiasmo — uma forma animal gigante como você?
Ele se desvencilhou, retornou para seu banco e sentou completamente relaxado no assento.
— Vai demorar algum tempo para poder se transmutar, normalmente uma pequena habilidade feral surge antes, no meu caso foram os caninos, para meu irmão foram as garras.
Olhei ao redor, fascinada com o quão interessante era ver no escuro, as cores eram esverdeadas e pareciam se desmanchar fracamente.
Não consegui dormir. Debrucei-me na janela observando o caminho arborizado, vendo com extrema clareza os animais noturnos, as folhagens sendo carregadas ao relento do vento fresco.
— Deveria dormir — sugeriu Dorian, olhei-o de viés.
Sua carranca expunha preocupação, diferente das outras vezes ele não tentou mascarar ou reprimir a expressão.
— Tem alguma coisa errada?
O senhor do fogo crepuscular olhou-me, vi sua garganta oscilando engolindo o nada. Ele esfregou as mãos uma na outra e falou me olhando por debaixo dos cílios:
— Recebi uma carta hoje, Ana — disse-me, supus que o caso ocorreu quando estava adormecida — Estão me solicitando em um dos acampamentos, as coisas desandaram um pouco.
— Então por que não vai? — Dorian me olhou como se eu tivesse proposto um acordo de alma.
— E deixá-la, jamais.
— Não pode me levar, sabe, voando ou montada em você — ele ergueu a cabeça de olhos arregalados, no fundo um brilho devasso, seus lábios logo se curvaram em um risinho sensual — Quero dizer na sua forma de lobo — esclareci, revirando os olhos. Francamente esse homem estava recebendo a tudo o que eu fazia com teor sexual.
— Não posso me transformar em lobo por um tempo, acabei consumindo muito minha magia na frente de batalha, voar exige muita magia, também fiquei completamente esgotado buscando por você e agora projetando os feitiços de proteção — ele disse, ainda com a expressão encantada e lasciva.
— Por isso não voa com frequência?
— Voar exige muito de mim, se eu me transformar em lobo acabarei não conseguindo voltar a forma humana por algum tempo — assenti, entendo o seu ponto.
— Não me importo em ter uma companhia de um cachorrinho por algum tempo — falei, ocupando novamente meu lugar no banco.
Ele me lançou um olhar grave, desaprovando minha associação de sua enorme forma lupina a de um cãozinho.
— Quero a levar em um lugar antes de irmos então — declarou. A frase me animou um pouco.
— Uma taverna? Sou ótima com cartas — ele revirou os olhos, um gesto tão íntimo e humano, tão comum.
Sim, tinha que admitir que às vezes simplesmente esquecia que Dorian era um senhor do fogo crepuscular, que tinha uma imponente forma de fera, que era tão velho quanto algumas árvores. Que ocupava um dos três pilares da magia do fogo.
Comigo ele era Dorian. Vez ou outra a realidade crua de quem ele era vinha de encontro a minha mente, me deixando tonta e enjoada. Eu pensava em nossos momentos ruins, e em suas mentiras doces, em seu silêncio sobre suas jogadas e toda a malícia em relação ao que tínhamos, ou o que ele queria de mim.
— O que esse cheiro significa? — indagou ele. Suas ventas se dilatando lentamente.
Era uma maldita falta de sorte ele sentir meus aromas, não era a primeira vez que questionava os cheiros que eu liberava quando pensava em nós. Não responderia, e não respondi.
Dorian assentiu, observou através das janelas o horizonte começar a explodir em um tom azul mais tenro e claro, fiquei satisfeita em perceber que não haveria insistência de sua parte.
A verdade é que não estava pronta para lidar com isso, não agora, talvez depois, muito depois, no ano seguinte ou no próximo.
Sacudi a cabeça.
Eu deveria estar tentando encontrar formas de fugir dele, de o abandonar e buscar por minhas respostas eu mesma, por outro lado havia essa presença em busca de mim e de minha magia caótica, essa entidade que parecia temer tanto Dorian, eu seria uma tola se fugisse, estaria morta se decidisse por escapar.
Suspirei fundo enterrando esses pensamentos, amanhã trataria melhor deles, hoje não, hoje eu estava bem. Amanhã.
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Chamas De Inverno (PAUSADO)
RomanceUm momento pode mudar tudo. Liana, uma jovem caçadora solitária que vivia na floresta há muito sozinha, vê-se com o destino ligado a uma fera que se passa por homem após ser atacada por uma besta sombria. O medo passa a ser o novo aliado da jove...