Capítulo 23

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Lembro-me de que vi Dorian certa vez transmutar sua forma de homem para a de lobo em uma explosão de luzes e chamas, mas acompanhar a coisa toda de perto era muito diferente.
O corpo de Dorian se inundou de chamas de inverno, azuis e brancas, tendo destaque com o plano de fundo sendo a noite incrustada de estrelas e árvores engolidas pela sombra. As luzes expulsaram toda a escuridão, a pele de Dorian desmanchou-se em seu fogo e então explodiu lindamente, um lobo enorme e alvo ressurgiu das chamas, forte e vigoroso.
Caminhei até ele, tinha um conhecimento profundo de que o lobo jamais me machucaria, mas isso não impedia que um arrepio percorresse minha espinha ao observar seus movimentos.
O animal, Dorian, abaixou a cabeçorra em minha direção, farejando-me com alegria.
Quase caí quando seu focinho gelado tocou minhas costelas, mas mantive o equilíbrio e alisei sua pelagem, essa que mostrou-se tão macia que derretia entre meus dedos.
- Você fica muito fofo assim - comentei, em resposta a cauda dele espanou o ar.
Alisei ele por mais algum tempo, apesar de sua forma enorme de lobo ainda sentia nossa ligação através do contato, não era sexual, vinha puramente da necessidade de estar com ele, juntos.
Dorian curvou a parte dianteira do corpo em um convite e eu subi em seu lombo, com alguma dificuldade, mas a fera ajustava o corpo para eu conseguir me acomodar com conforto.
Apertei sua pelagem assim que a besta enorme se colocou em movimento.
Dorian rasgou a noite com sua velocidade sem precedentes. Ele escolheu a trilha, mencionou ela para mim depois de superar nosso impasse matinal, aparentemente ela havia sido feita para a travessia única e exclusiva dele. Ninguém a percorria.
O senhor do fogo não tinha deixado claro se de fato se alimentava de humanos, o que abria margem para especular. Eu não pensava muito na questão e só receberia uma resposta de fato quando chegássemos ao nosso destino, mas rezava aos deuses para nenhuma criatura cruzar nosso caminho.
Ao final do dia minhas coxas já estavam completamente doloridas. Me arrastei de cima do lombo de Dorian e alonguei minhas coxas um pouco.
Acendi uma fogueira e sentei-me em uma pedra com as pernas estiradas.
Retirei um embrulho com pão e mel da bolsa, comi um e ofereci o outro para o enorme lobo.
Os olhos azuis da fera desceram e seu focinho pairou diante do alimento. Ele era enorme e precisaria de uns cem pães para o alimentar completamente. Dorian rejeitou o alimento virando brusca e dignamente a cabeça.
- Não seja tão arrogante - resmunguei, guardando o alimento e pegando o cantil com água.
Dorian farejou o ar, o sorver de seu focinho liberava um som ecoante pela mata impermeável.
Então ele começou a se mover, as pelagens pérolas tinham destaque na cortina densa e negra a nossa volta. A fera desapareceu.
Minha visão se ajustou ao negror, lacrimejando um pouco, mas, por fim, eu pude ver no escuro novamente.
Dorian havia, de fato, desaparecido daquele projeto de clareira, no entanto a vibração dele diziam-me qual direção tomou, em que distância estava e como estava.
Liberdade, era como ele sentia em sua forma licantropa.
Retirei o saco de dormir das costas, o desenrolei e estirei-o no chão.
Deitei encolhida no lugar, alguns minutos depois observei o lobo ressurgir, um animal grande pendido em sua boca.
Onde o achou, como conseguiu o capturar tendo um corpo tão grande e pesado era o ponto, mas ao menos ele estaria alimentado.
Ouvi os sons de mastigação, os ossos sendo triturados, observei o sangue macular a pelagem de neve fresca e a satisfação em sua expressão ao finalizar a refeição.
Dorian usou uma das patas para limpar o sangue, o que não adiantou exatamente bem. Então ele se aproximou de mim, farejou-me invasivo antes de se deitar próximo a mim, muito próximo.
- Boa noite - resmunguei em um tom embargado de sono. Dorian respondeu em um gargantear ecoante.
A viagem prosseguiu nesse ritmo por mais dois dias. E com a passagem do tempo mais animalescos e hostis os modos de Dorian se tornavam, mas ele nunca recuava quando eu esticava minha mão para acaricia-lo, ou quando abraçava seu pescoço em busca da maciez e calor dele durante as noites cada vez mais frias.
Naquela manhã dei-me conta de que o lobo acordara agitado. Ele pulou para trás afastando seu calor de mim, sacudiu sua cabeçorra de um lado para o outro e lançou um olhar para mim que não soube decifrar.
Apoiei o peso do meu corpo nos cotovelos analisando-o, ele andou manso de um lado para o outro, então saiu em disparada.
A música em seu corpo era única e quase me tirou o ar, ânsia, ele estava com fome de... de mim.
Fiquei levemente desconfortável em minha própria pele.
O chão tremia tranquilizando-me a respeito de sua proximidade. E então outra vibração emergiu.
Sai do saco de dormir em um salto.
Isso era ruim, muito ruim, a última vez que Dorian comeu foi na primeira noite, embora sua tolerância em relação a fome fosse admirável eu não tinha certeza se na presença de outros humanos esse controle ainda estaria em vigor.
Enfiei minhas botas nos pés e sai cambaleante por entre o mar de vegetação e troncos.
O cheiro fresco no ar e a inatividade de movimento de Dorian dizia-me que o próprio estava agora tomando água.
Mal aventurei-me no mar de vegetação quando a presença de repente pulou de onde estava e se estabeleceu a minha frente.
Soltei um gemido de tensão e cambaleei para trás.
Diante de mim estava o homem que chamava vagamente o nome de Dorian no dia em que fui sequestrada.
Ele desceu os olhos para mim, estavam comuns, normais, nada próximo daquela coisa alterada e estranha que vi em nosso primeiro encontro.
- Senhorita - falou ele, olhando ao redor, em busca de Dorian percebi.
Ele havia sido enfeitiçado por Nik, eu sabia disso, mas não conseguia confiar.
Meu poder deslizou por entre meus dedos e fez o chão tremer levemente, o homem olhou-me com confusão e ergueu ambas as mãos ao lado do corpo, um gesto de rendição.
- Não sou inimigo, eles...
- Eu sei - interrompi, controlando minha respiração.
- Ana me enviou para buscá-los, imagino que a viagem esteja exaustiva - revelou, procurando novamente pelo senhor do fogo.
- Sim está.
Dorian surgiu, talvez motivado pela libertação repentina da minha magia para emergir tão rapidamente.
Ele olhou para mim e só deslocou o olhar para o mensageiro depois de conferir se eu estava bem.
- Meu nome é Filipe aliás - disse-me, admirando boquiaberto o rosto de Dorian - Senhor - falou, realizando uma mesura demorada.
Dorian respondeu com um inclinar de cabeça vistoso.
Caminhei até o recém chegado e posicionei-me a seu lado conforme o corpo de pelagens brancas do lobo assumiam um vigor lindo e cristalino.
Ele sacudiu o enorme corpo. Se antes ele explodiu em chamas azuis agora ele implodiu, fagulhas índigo flutuaram ao sabor do vento e de repente um senhor do fogo, lindo, estava diante de nós.
Ele se achegou de nós e fez questão de roçar os dedos quentes em meu antebraço.
- Vamos então - disse Filipe.
Dorian movia o maxilar, aparentemente se readaptando a sua forma original, até parecia que não estava pronto para falar.
- Por favor, vamos, estou exausta - disse por ele.
Dorian desceu os olhos para mim, sua sofreguidão pulsou dele em ondas, ondas que esperavam por respostas, respostas minhas.
Engoli em seco e desviei o olhar para Filipe e a maravilhosa teia cintilante que ele nos envolvia.
Logo tudo era brancura e brilho, Filipi fez um gesto brusco e, subitamente, o solo se deslocou e o ar teve uma queda drástica.
Me apoiei em Dorian, rejeitando o comando de meu íntimo para ignorar Filipe e foder com ele ali mesmo.
Ele segurou-me possessivo contra o corpo, em um abraço, no entanto não. Era mais, era um sinal de posse, reivindicação que Filipe notou. Discretamente o vi se afastar logo antes de estagnar-mos novamente em terra firme.
A teia firme e reluzente se rasgou, chovendo ao nosso redor e lá estávamos novamente, diante da mansão de Dorian.
Um gosto amargo tocou minha língua ao sentir o silêncio, a falta dos lobos.
Toda a residência, de cores amanteigadas e vidros turqueza, ao mesmo que me convidava me expelia. Eu não sabia em qual sensação me aterz queria me virar ir embora, correr e fugir, mas também queria entrar, tomar um lugar em uma cama, meu lugar em minha cama, ler um livro, ler meu livro.
Olhei Dorian por cima do ombro, os dedos calejados ainda em posse dos meus, seus olhos de lâminas me envolveram.
Aquela cela fria me veio a mente, a forma desdenhosa como ele me tratou, e ali estava eu, com o corpo se contorcendo para montá-lo na primeira oportunidade que tivéssemos a sós.
O canto da boca dele discretamente se elevou, lendo quais eram os pensamentos sórdidos em minha mente.
Filipe notou, mas sabiamente calou-se e fez-se de cego quando meu senhor do fogo crepuscular dedilhou meu rosto, a força do contato entonteceu-me e fez-me fraca, perigosamente sedenta.
Filipe se despediu de nós, educadamente, uma sombra cruzou seus traços ao observar as portas, onde ele ficou batendo e chamando por Dorian em um passado ainda tão palpável.
Então ele se foi, envolvido no casulo de sua magia.
- É um feitiço - disse-me Dorian, notando minha curiosidade - Filipe é bom com feitiços de realocação.
Assenti, fazia sentido afinal, tê-lo como mensageiro.
Marchamos para a mansão.
Atravessei o umbral e de repente tudo o que vivi no lugar retornou, a pressão em minha mente e então em meu corpo, os golpes furiosos de Nik...
- Não faça isso - Dorian me alertou.
Mas foi a imagem de Ana surgindo que me puxou daquele lugar sombrio. Ela estava com os olhos marejados, mas felizes e satisfeitos, talvez um tanto arrependidos.
- Sinto muito querida - murmurou, ao reivindicar-me em um abraço de estalar os ossos.
Soltei uma respiração que não sabia estar contendo, então devolvi o abraço na mesma medida.
- Desculpe, desculpe pelo o que disse, eu não...
- Não se preocupe menina, está tudo bem - anuviou ela, dando um passo para trás e analisando meu rosto, ela olhou de modo suspeito para Dorian e então sorriu com vigor.
- O que foi? - me coloquei a questionar, embora já soubesse que ela notou nossa... relação.
- É que você está radiante - disse-me, ainda mantendo nossas mãos ligadas.
- Ana - Dorian chamou-a em um tom de ordem, um tom que até o momento nunca tinha o ouvido usar para se reportar a governanta.
O rosto da mulher se transformou, adquiriu um quê sombrio e melancólico. Ela olhou para Dorian, os olhos escuros reluzentes disseram mil palavras que não pude entender. Mas o lobo pareceu entender, e o que fez foi trocar o peso do corpo entre uma perna e outra e levantar o rosto com severidade.
Afinal, Ana era sim sua figura materna, mas acima de tudo sua serviçal.
Imaginei que Dorian tinha trocado cartas com a mulher, vi ele escrevendo algumas, mas não me dignei ou fiquei particularmente interessada em saber sobre o que tratavam. Agora, no entanto, estava me afogando em curiosidade. E só temi, pois pela expressão de Ana, ao deixarmos a sós no hol, não poderia ser coisa boa.
Andei um pouco. Uma tentativa, que sabia ser inútil, de Dorian não conseguir detectar minhas emoções.
- Me diga que é algo bom e que Ana está sendo superprotetora - falei, ao atingir a sala de jantar e rodear a mesa posta para nós.
Por Amahr, sabia a maldita resposta, sabia que seja lá o que fosse sem a aprovação da governanta não era boa coisa.
Escutei o suspirar do lobo, então senti os dedos dele em minha cintura. Naquele momento meu coração já havia acelerado e minhas mãos já suavam frio, sem ligação com o nosso desejo faminto um pelo outro.
- Dorian? - questionei, ao não obter respostas.
E de fato não as obtive de sua boca pois logo Ana estava ali, segurando uma caixa branca entalhada de graciosos arebescos.
Dorian tomou o objeto das mãos da mulher e dispensou-a em um comando silencioso.
Olhei a caixa, então olhei Dorian nos olhos.
Ele estava com sua característica expressão fria e desdenhosa, abriu o fecho da caixa com cuidado e removeu um lindo colar de dentro. O objeto era todo em elegância, com pedras lapidadas pequena delicadamente pendidas no arco de prata, como os olhos que agora me estudavam. As gemas azuis tremeluziram mesmo sob a luz morna do ambiente, e a pedra no meio era particularmente grande.
Levantei as sombrancelhas para o lupino, ele me passou a peça.
O peso do objeto era moderado, comum, a textura fria e lisa, mas a sensação que o colar me passou era errada, obscena.
Nunca achei que voltaria a sentir meu poder ser varrido de dentro de mim novamente, mas ali estava eu, no silêncio e na inatividade da magia.
Soltei rapidamente o objeto, a peça deslizou pelos meus dedos e bateu no chão com um farfalhar sútil.
Dei alguns passos para longe, incrédula, ferida, enraivecida.
Dorian me fitava sem misericórdia, largou a caixa sobre a mesa e deslizou as mãos para os bolsos da calça ao dizer:
- Coloque o colar Liana.

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