O Monte e o Cálice: Parte XII - Despertar na Cidade Baixa

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     Presos. Entorpecidos. Esquecidos.

     Caminhar dentro de tão puro escuro mostrava-se uma perdição. Um tormento andar sem saber exatamente qual era a estrada, o que tocavam os pés. O próprio ar não colaborava em nada. O cheiro entre abafado e podre ocupava até mesmo os pensamentos. O que fazia tamanha multidão acreditar naquela empreitada? Quem sabe o coração, e a incerteza quanto à dor e a fumaça. Quem sabe fosse isso. Apenas orientados por alguém cujo papel era diminuir os desafios. E eles foram diminuídos em muito. 

     E nesse mundo, as decisões de mulheres como Bellara de Luniestra, Adelaide Seirir, Neiva Dalmenz e de homens como Vernon Lee, Ecanda de Luniestra e Olbett Tistein fizeram o mundo virar drasticamente o fim de uma página. O início das outras, porém, eram os deuses... estes jogando dados com o vento.

     Kings Aderio andava à frente de milhares de pessoas seguido a seu lado por Lauro Ezahi e Litli. A armeira era encorajada por Lauro a cuidar de sua família. Certamente, Kings Aderio também o sabia, Litli guardava mais do que ela própria compreendia de sua genial habilidade artística. O dracus só esperava que nada fosse necessário no escuro retinto.

     O problema é que havia o som de um coração pulsando pelas paredes. Apenas dois ali naquela multidão ouviam. Além do próprio gato de Litli.

     Palavras só podiam ser ditas aos sussurros. Mesmo para a audição do dracus, eram apenas chiados fracos, o que lhe deu um pouco de esperança de uma travessia tranquila. Para onde exatamente, Kings Aderio não sabia, mas seria guiado pelo correr das águas quando elas deixassem de se ocultar. Era certo que o canal em algum lugar lá na frente desembocava no rio ou com sorte adentro da floresta. Dali, sairiam e buscariam pelo Cálice, o qual as pessoas já estavam escapando de Nianda para tanto. O número de pessoas que chegaria de uma vez ao Cálice se contaria por alguns milhares. Isso se a empreitada fosse um sucesso. O homem que diziam se tratar por Tenar Alvum deveria recebê-los com alegria por seu povo estar à salvo.

     Kings Aderio contou mentalmente com suas capacidades ao menos três mil pessoas, antes de fechar, para todo sempre — sim, para todo o sempre — aquela passagem. Fez com pouco estrondo, desejando de todo que nada o tivesse ouvido. Aquela batida como a de um coração não crescera nem diminuíra, um bom sinal, supunha Ade.  Dali em diante somente o silêncio dos passos abafados lhes foi o guia.

     O lugar tratava-se realmente de uma verdadeira estrutura de cidade, na qual os caminhos em galerias e dutos se comportavam como vias largas o bastante para que umas dez pessoas bem juntas pudessem passar. As galerias abriam-se em portais, dos quais nenhum foi atravessado. Sempre em linha reta até aonde dava. Kings Aderio achava um tanto ridículo que tanta gente fosse caminhando assim pelo escuro, tateando a parede onde ele dizia para tanto. Andando com cuidado aonde ele dizia para caminharem. Eram obedientes. O medo faz isso com a gente.

     A evolução pelo percurso se daria da seguinte maneira acordada com Lauro: as pessoas esperariam pelo sinal de Kings Aderio para continuar de cem em cem metros, mas aumentaria esse número para mais caso o dracus e suas habilidades assim o decidissem. O maior medo de Ade, no entanto, ficava não com o despertar de algo lá embaixo, mas com o que pudesse sair das paredes ou do barulho das águas. Gritos seriam ouvidos, e o caos tomaria posse da assertiva passeata obscura. Quando as águas se revelassem, e se fossem barulhentas o bastante, talvez vozes pudessem ser permitidas, apenas talvez. Esperava um caminho curto.

     Ele não veio...

     O séquito adiantou-se bem com a luz pequena que os guiava em suas cabeças, além de Kings Aderio, Lauro e os voluntários para organizar a descida. Estes foram muito mais do que Kings Aderio esperava. A liderança escolhia poucas, ainda que boas mãos. Uma delas era Litli. A armeira desenvolvia coragem frente à escuridão espessa. No seu ombro, o gato meneava a cabeça de quando em quando erguendo a cauda como uma bengala sobre a cabeça da armeira. Ora sim, ora não, o bichano mostrava detestar ratos, mas os assustava como ninguém. Outro sujeito que também estava entre os voluntários foi aquele homem que tentara interrogar Kings Aderio antes de entrarem na Cidade Baixa. Daquele tinha certa suspeita, até que o semblante tornou-se mais voluntarioso do que desconfiado.

Kings Aderio e O Sopro que Dobra a MorteOnde histórias criam vida. Descubra agora