Estrada adentro e estalagem afora, Kings Aderio só pensava num lugar para se deitar. Esta noite não seria na casa de Tistein. Normalmente quando terminava algum trabalho pendurado nas tabuletas de avisos de perigo, desaparecimento, descontrole populacional, mortes, ou onde se chafurdar nos poços de bostas, em pântanos e aquedutos, Ade preferia pegar parte — ou nada — da recompensa e depois ir embora do lugar. Muito raramente ficava numa estalagem, dando preferência ao relento ou a uma longa jornada.
Os dracus tinham uma pequena peculiaridade além das inúmeras que já possuíam. A caminhada para um dracus era uma forma de revigorar as energias. Os pés saciavam a fome dos músculos, recuperavam feridas, até mesmo as profundas, o ar retornava aos pulmões com mais profusão. Isso se dava, segundo Adverus Aramor, por bípedes serem tão incompetentes de evolução. Não entrou em muitos detalhes, apenas era assim e se mostrava artífice maravilhoso para os dracus, afinal, podiam caminhar por distâncias depois de atravessar rapidamente uma porção vasta de terra recuperando-se sem cessar. Destarte, se tivesse para onde viajar, iria. Mas Kings Aderio tinha deixado muitas coisas fora de lugar: a menina precisava ser sepultada e incinerada por sua morte tão brutal causando no aparecimento da nelia; Olbett Tistein ainda precisava ser consultado, ora, não tinham finalizado a conversa niandina, por assim dizer, à respeito do sopro que vencia a morte; ainda havia o ritual, Ade achava apenas um capricho de Olbett, mas vindo dele dever-se-ia tratar a sério. Além disso ainda havia a rainha, precisava ter certeza de estar bem; além de Oromergius. Essa última parte não deixou-lhe nada animado. A vontade era de esbofetear o rei, depois Pólo, para finalmente tomar um banho, lavar as mãos manchadas do sangue dos dois.
Antes de adentrar na Arco em Forca, Kings Aderio foi pedido a explicar para o estalajadeiro o que havia acontecido naquela noite. O homem estava com outros mais do lado de fora atraídos pelos barulhos de Eberlen e os gritos dos chupa-cabras. Como sempre prezou pela sinceridade, e era muito frio quanto a ela. Deu detalhes encorajando para que se apressassem a dormir e que possíveis ladrões, em meio à multidão se avultando com o som de sua voz, pensassem muito antes de buscarem um possível combate. Cansado estava, não inofensivo. Assim se fez deixando a estalagem emudecida. Vozes, portas batendo, bandejas na mesa, garrafas guardadas, louças gemendo na água gelada da pia, o pano lustrando, o canto crepitante da lareira. Até se aquietar na recepção, nas mesas e na cozinha.
O dono da estalagem, um homem chamado Vilar, obedeceu a seu pedido mais pelo ouro de Luniestra do que pelas ameaças na voz de Kings Aderio. Não obstante uma mordida na moeda, apenas para ter certeza da procedência. Sem contar o olhar ríspido de Aderio.
Deitado em seu quarto, Kings Aderio lembrou de algo que ouvira lá embaixo. Na verdade uma expressão entre cachimbos, bebidas e queijos. Das falas de boca cheia ouviu cálice, cálice, Cálice. Diversas vezes. Nem um elfo ouviria tão baixo sussurro. O assunto dizia respeito aos a-piques e pessoas fugidas de lá. Haveria certo movimento antes e em breve. Muitos se aventuravam a deixar seus barracões desafiando a guarda mais baixa de Nianda. Queriam ir em busca dele: Tenar Alvum.
Nianda tinha um sistema simples de ser explicado quando não se entrava nas miudezas dos moradores. Basicamente tratava-se de uma cidade opulenta, beneficiada pelos minérios das Colinas Sinuosas ao norte, os pomares à volta, a Universidade em seu centro e toda sorte de mercadorias por todos os lados. Na cidade se tecia, armava, vendia, comia, roubava, traía. Uma cidade como muitas. Mas ao lado da muralha leste, ao pé dos canais desembocando no lago, se avultou uma família. Depois outra. E mais outra. E outra, crescendo nas sombras da ponte lá no alto. O Monte não podia observar o crescimento do que estava abaixo da ponte. É que Nianda era Nianda. O olhar voltado apenas para o alto e à frente. As pessoas andavam com queixo erguido, o olhar baixo, tentando ficar acima da neblina. Se de fora da cidade fosse visto um porte parecido, as pessoas já diriam se tratar de ar niandense de ser. E escondidos pela ponte, famílias cresceram crianças. Junto a elas, sonhos, pois as pessoas não podiam pagar a taxa para entrar na cidade. Portanto, que trabalhassem, ora. Como, se o trabalho faltava? Então agora o niandense tendo erguido seu trabalho agora teria de arranjar lugar para essas pessoas? Quem as mandou aparecer em seus muros? Ora, não se doa lugar a quem não tem lugar!
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Kings Aderio e O Sopro que Dobra a Morte
Fantasy🥇🥇 🥉 "Algo vem" De todas as expressões desta terra fantástica, estas são as palavras que mais atormentam Kings Aderio, rei de Seta Ambel e dracus. Diferente dos outros dracus da história, Ade foi forjado por três chamas ancestrais do formidável A...