Detrás da misteriosa porta de onde vinham os pães, Ék batia a massa de trigo dedilhando as extremidades de uma roda grande e fina de outra massa em fôrma de bolo. A torta logo ficaria pronta, mas esta não seria para venda ou para uma reunião feliz. Vez e outra, algumas lágrimas caíram na bancada da cozinha e, mesmo sem ouvi-las bater contra o tampo de madeira, Ék praguejava. Não queria mais nenhuma lágrima adoecendo suas massas. A Morada das canções mais belas não merecia esse tipo de homenagem à partida dos amigos e conhecidos.
— Você também, Mirto — disse ele a si mesmo batendo cada vez mais forte a próxima massa. — Nós tivemos nossas diferenças há muito tempo com o que você reclamava que eu colocasse nas broas de fubá e nos pães. Mesmo assim, um dia fomos crianças. Brincamos juntos, sempre muito companheiros, segurando as calças um do outro para não sujar na lama. Muito companheiros, mesmo. E como fomos.
Ék já tinha um total de sete tortas em sua bancada desde o momento em que aquele sujeito estranho o deixara ali na entrada da padaria. Sete tortas e sabores diversos, com creme aerado de chocolate, morango, outra com nozes e castanhas, outra lambuzada de baba-de-donzela e outros cremes, e o restante delas — as preferidas de toda a cidade por se tratar de uma receita especial de Ék — eram de maçãs. O bom padeiro pensava se as elegias no dia de amanhã seriam bonitas para os dois companheiros e suas famílias; mereciam uma homenagem digna de grandes pessoas, humildes, honestas, do tipo que não se via muito hoje em dia.
— Aquele rapaz me pareceu honesto — e Ék tinha feito o que o misterioso rapaz pedira, não tocando no saquinho deixado na porta da padaria; certificara-se de que ele estava ali pouco depois do rapaz ter ido. — Ele também receberá uma torta inteira se realmente puder nos ajudar — olhou com um sorriso triunfante para uma bela torta de pera que tinha acabado de sair do forno e estava com um bilhete bem pequeno ao lado da forma onde se lia: NÃO RELE!
Durante a tarde os guardas apareceram para trazer as notícias do que poderiam ter encontrado:
— É só a desolação naquele lugar — bufou o magrelo capitão Boris. — É muito feio falar dessas coisas, Ék, mesmo para nós que estamos bem acostumados em ver coisas feias.
— Mas não isso — disse o outro guarda. — Isso é longe de tudo o que já tinha visto. E olhe que sou de Belafre e lá, por ser cidade grande e ter muita gente vivendo nos esgotos, só as histórias de desaparecimento tendem a ser ainda mais horríveis. Pense em canibais...— Não quero pensar em nada disso, senhores — interrompeu o gentil Ék entregando-lhes uma caneca de seu café cremoso. — Não faz muito bem aos fermentos, sabem? Mas não acharam nenhuma pista? Não têm ideia do que poderia ter feito isso?
O outro guarda, mais forte que o capitão e, também, menos cuidadoso com a língua tomou a palavra.
— Achava que fosse o louco Mirto — Ék ficou furioso com a insinuação desse. Já o conhecia de longa data, querendo muito amassar o rosto de bigode cortado no arco dos lábios, como faziam suas mãos na bancada de massas.
— Rener, você pode ser um guarda, mas se faltar com respeito com quaisquer de meus camaradas — Ék nem percebeu, mas estava com o rolo de massa nas mãos batendo na bancada; uma lasca de madeira voou pela mesa. Bóris não sabia se do rolo ou da própria bancada. Só aguardou por Leni que do fundo não veio.
— Acalme-se, homem — disse Boris no tom mais calmo que possuía. — O Rener não falou com intenção, não é Rener?Rener assentiu a contragosto, mas Ék não ficou satisfeito.
— Todos os tratamos bem, não por darem proteção, mas porque nessa cidade o povo é camarada antes de ser povo. — Ék apontou o rolo de pão para o guarda Rener. — Se falar mal mais uma vez de alguém que conheço, Rener, juro que faço você sentir o que é amassar trigo, amassando esse rolo na sua cara insossa em vez do outro.
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Kings Aderio e O Sopro que Dobra a Morte
Fantasy🥇🥇 🥉 "Algo vem" De todas as expressões desta terra fantástica, estas são as palavras que mais atormentam Kings Aderio, rei de Seta Ambel e dracus. Diferente dos outros dracus da história, Ade foi forjado por três chamas ancestrais do formidável A...