Capítulo 1

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PARTE 1

Sinônimos de vestígio

/ves·ti·jiu/

traço, toque, sombra.

resquícios, ruínas.

rastro, pegada.

Wilhelm

Não seria um dia comum para Wilhelm.

O alarme decidiu acordá-lo uma hora mais cedo do que o normal. Às cinco e não às seis. Seu cachorro comeu seu chinelo e seu gato, que passou um ano olhando passivamente para seu aquário, resolveu naquela manhã atacar seu goldfish.

E para piorar, a única blusa de frio limpa que tinha no armário era um moletom vermelho bordado com um Papai Noel na frente. Não tinha jeito, iria vestir ele mesmo.

E quando pensou que nada mais poderia dar errado, seu carro um ponto zero estava com um pneu furado.

O dia seria longo.

Essa história que irei contar aqui não tem começo nem fim, em um certo sentido. Não sei se você deveria se importar com quem eu sou ou se eu existo. Só sei que Wilhelm era um jovem incomum. Incomum não no sentido de uma vida repleta de riqueza e regalias, como se ele fosse um príncipe.

Nada disso.

A vida dele só não era típica mesmo. Coisas que não aconteciam com outros jovens aconteciam com ele.

Por isso, Wilhelm precisava planejar tudo, do avesso ao direito. Nada podia sair do seu controle. Ser pego de surpresa não combinava com ele. Mas, às vezes, ele não conseguia ter o domínio de tudo.

Com os olhos pregados no chão e mantendo uma distância das pessoas a sua volta, Wilhelm puxou para baixo as mangas da blusa de frio até cobrir totalmente suas mãos.

Estava a caminho do estúdio de fotografia, onde estagiava com seu amigo, Ernesto.

"Que manhã maravilhosa!", Wilhelm disse, sorrindo para aumentar seu contentamento com o mundo, apesar de saber o quão ineficaz isso era.

"Psssiu! A chef Tramontina tá cantando", Ernesto falou baixinho, colocando o dedo indicador na frente da boca, pedindo silêncio. "E você sabe o que isso quer dizer."

"Você está atrasado."

Os dois pularam de susto quando Felice, a chefe, apareceu de repente atrás deles.

Quando Felice cantarolava, Wilhelm e Ernesto sabiam que deveriam evitar contato visual, qualquer tipo de conversa inútil e, se possível, não respirar o mesmo ar que ela.

"Só um pouco. Só sete minutos...", Wilhelm disse, forçando um sorriso.

"Só um pouco?", ela rosnou. "Sete minutos é quase dez minutos e dez minutos não é só um pouco atrasado."

Os olhos de Felice percorreram em um nanossegundo toda a extensão do corpo de Wilhelm, estranhando talvez seu moletom natalino ou o fato de estar usando mangas longas num calor de 30º. Ou as duas coisas.

Wilhelm aumentou ainda mais o sorriso, como se não estivesse vendo a fumaça sair pelas narinas dela, e concordou com a cabeça. Nessas horas, era melhor ignorar.

"Você está certa. Não vai acontecer novamente."

"Estamos perdendo clientes. Não é hora de relaxar. É agora que temos que trabalhar com sangue nos olhos." Ela estendeu um arquivo na direção de Ernesto. "Aqui está o tipo de conteúdo que o cliente quer que seja fotografado."

Felice era a dona do estúdio. Sua grande mesa em L estava sempre muito bem organizada e quase nunca seu telefone tocava mais de duas vezes. Cada fibra do seu corpo expressava o quanto era competente. Ela precisava ser assim.

Única filha entre quatro irmãos homens. A vida toda escutou que não precisava trabalhar, apenas se casar e ter filhos. Esse não era seu desejo e ela precisou lutar muito, o dobro que seus irmãos, para mostrar seu valor e conquistar uma posição no mercado.

"Irei revisar agora." Ernesto pegou a pasta e foi imediatamente para seu assento.

Ela respondeu com um sorriso, que desapareceu tão rápido quanto apareceu, e se retirou para sua sala. Ernesto compartilharam um suspiro de alívio.

"Não veio de carro?" Ele apontou para o Papai Noel sorridente bordado na frente da blusa de Wilhelm.

"Pneu furou."

"Não quis tentar o metrô?"

"De jeito nenhum", Wilhelm disse com uma expressão séria no rosto e tirou, finalmente, a blusa de frio. "Você tem que parar de chamar ela de Tramontina. Uma hora ela vai escutar."

"Não tenho medo dos cortes rápidos dela, meu amigo." Ernesto deu de ombros. "O que eu tenho medo mesmo é da sua mãe. O que foi aquilo ontem?"

"Ficou assustado?"

"Não sei como você aguenta. Ela ficou o almoço inteiro falando como você iria queimar no fogo do inferno. Eu contei. Foram quarenta e sete minutos."

"Ela não sabe que eu sou gay, então, teoricamente, ela não estava falando de mim", Wilhelm pontuou.

Ernesto era a única pessoa com quem podia desabafar sobre os desaforos da sua mãe. Não sabia o que iria fazer se ele parasse de emprestar seus ouvidos. Suas conversas eram como sessões de terapia.

"Você acha que ela vai mudar de opinião quando descobrir que o filho querido e maravilhoso dela é gay?"

Wilhelm suspirou, não querendo pensar nisso. Sua mãe era muito religiosa e ele foi criado sob a orientação católica praticante. Qual era a chance dela aceitá-lo do jeito que era? Zero. Mais um suspiro. Era frustrante, um pouco angustiante.

Fechou os olhos e espreguiçou os braços, forçando a cabeça a mudar de trilho e pensar em questões mais úteis, como seu estágio.

Estava nos meados do curso de Fotografia e seu objetivo de vida era registrar a vida selvagem. Por enquanto, isso era apenas um sonho, pois no momento o que pagava seu aluguel era tirar fotos de pessoas.

Wilhelm sentou-se na sua mesa e, após certificar de que ela não havia sido tomada por poeira durante o fim de semana, tratou de finalizar a linha editorial do último projeto do mês.

Os negócios realmente não estavam bem, o estúdio estava com poucos trabalhos, mas estava confiante de que Felice iria conseguir dar a volta por cima. Não iria tardar para uma oportunidade surgir.

Sem Deixar Vestígio [Wilmon]Onde histórias criam vida. Descubra agora