Capítulo 8

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Wilhelm

No auge do dia, quando o sol estava vigiando seu apartamento, Wilhelm escutou o interfone tocar de dentro do quarto. 

Entrou em pânico.

"Não, não, não."

Saiu correndo, vestindo apressado o moletom, e colocou a cabeça para fora da janela da sala, onde dava para ver a portaria do seu prédio.

Era sua mãe. Ela fechou o portão e desapareceu na garagem.

Era difícil considerar a visita da sua mãe prazerosa. O medo de falar ou fazer algo errado não o deixava curtir a companhia dela.

Wilhelm sempre tinha que fazer acrobacias para não abraçar e tocar na mãe. O desafio era maior nos aniversários e festas de fim de ano. A maldição não o deixava viver como uma pessoa normal.

Ele gostava de ler livros sobre o fim do mundo e, em suas noites sem sono, imaginava o mundo sendo dominado por uma pandemia que obrigava todos a manter distância um do outro, sendo necessário o uso de máscaras e luvas para evitar propagação do vírus.

Era loucura da sua cabeça ter essas esperanças estranhas. Não tem como culpá-lo por esses devaneios. Longe disso. Era na verdade incrível como ele conseguia viver essa nova normalidade.

"Mãe, o que faz aqui tão cedo?" Perguntou, colocando o livro Apocalyptic que estava em cima do sofá debaixo de uma almofada, antes que sua mãe pudesse ver o título.

Para ela, livros de ficção científica eram escritos pelo próprio diabo.

"Você fica lendo essas bobagens? Isso vai colocar uma parede entre você e Deus", ela disse, arrancando o livro fora da sua mão com o polegar e dedo indicador, como se fosse um lenço de papel sujo, e o confiscou dentro da sua bolsa. "É isso que você quer?"

Sabendo o que ela queria ouvir, Wilhelm disse que não. Tudo que queria era ter uma relação tranquila e respeitosa com sua mãe. Viver em paz, sem grandes problemas. Esse se tornou seu mantra. Principalmente depois que descobriu o que seu toque provocava. Então, a meta da sua vida era evitar confusões.

Depois da sua mãe brincar com seu cachorro, eles se sentaram na sua pequena mesa redonda de madeira para tomarem café. Ela abaixou a cabeça e Wilhelm automaticamente fez o mesmo, mas não fechou os olhos. Ele parou de fechar há muito tempo.

"Senhor Deus Todo-Poderoso" Ela orou. "Dê-nos a força para nos mantermos na linha e caminho estreito que Você colocou diante de nós, oscilando nem para a esquerda nem para a direita, mas sempre mantendo nossos olhos fixos em Ti, o grande doador de paz e vida. Que a tua vontade seja feita neste e em todos dias."

Sua mãe encerrou a oração com um Amém e Wilhelm soltou uma espécie de suspiro, que teoricamente era para ser também um Amém.

"Meu filho, trouxe mais peças para você ver. Elas são lindas! Tenho certeza que vou conseguir vendê-las na feira que vai ter lá no bairro."

Sua mãe bordava e fazia lindos trabalhos em crochê. Era sua única fonte de renda. O pai de Wilhelm morreu quando ele tinha 19 anos e eles pararam de receber pensão no ano que ele completou 21 anos. Desde então, viver no vermelho virou rotina.

Era difícil ver sua mãe com dinheiro sobrando para comprar uma roupa bonita ou fazer qualquer outro luxo para ela. Inclusive, nessa visita ela estava usando o mesmo vestido de três anos atrás. Um vestido lindo, inclusive, bordado por ela.

Wilhelm ajudava no que podia enquanto morava com sua mãe e continuou ajudando mesmo depois que saiu de casa para morar mais perto da faculdade.

"Como vai a faculdade?"

"Tranquilo."

"E namorada, filho, conheceu alguém bacana?"

"Não, mãe." Wilhelm bloqueou a tela do celular e o colocou dentro do bolso do seu moletom de capuz. "Conheci ninguém. Continuo na mesma."

"Fico preocupada com você. Nunca me apresentou uma namorada. Sempre está sozinho", sua mãe disse, com uma voz calma. "Você precisa formar logo uma família, como o Bom Livro fala. Marcos 10:6-9."

Sua mãe adorava jogar esse jogo. Toda hora que ela queria impor uma ideia, procurava algum versículo da Bíblia em sua cabeça para provar que estava certa.

"Eu estou bem sozinho e pretendo continuar assim."

"Você é muito novo para falar que vai continuar sozinho. Ninguém consegue ficar sozinho nessa vida. Logo você vai conhecer uma ótima mulher."

Wilhelm respirou fundo.

Como poderia contar para a mãe que, na verdade, o que queria mesmo era conhecer um ótimo menino, se escutava todos os dias ela falar como nojentos os homossexuais eram?

Se antes já era difícil, ficou ainda pior depois da maldição. Então, já que nunca iria conseguir namorar, muito menos casar, o melhor era apenas respirar fundo e depois mais uma vez e mais outra e mais outra...

"Eu não vou me casar, mãe."

Ela balançou a cabeça. "Filho, o que diz Marcos 10:6-9?"

Wilhelm sabia que tinha que desistir.

De uma certa forma, se sentia culpado por não contar a verdade para a mãe, por ela não saber sobre nada da sua vida. No fundo do seu coração, sentia que enganava ela.

Ela tinha uma ideia de como ele era, mas na verdade era o oposto e, ainda por cima, tinha o poder de seduzir qualquer pessoa do planeta com um simples toque.

Wilhelm respirou fundo.

"No princípio da criação", começou, fechando os olhos. "Deus fez homem e mulher. Por esta razão, o homem deixará a mãe e se unirá à sua mulher e os dois se tornarão uma só carne."

"Muito bom", ela disse, orgulhosa.

Wilhelm apenas sorriu.

"Agora eu preciso sair, se não vou chegar atrasado no estúdio."

Eles se despediram e Wilhelm partiu de carro para o trabalho.

Ao abrir a porta do escritório, foi encurralado por Felice.

"Wilhelm, você conhece o Simon de onde?", Felice perguntou.

"Do inferno", resmungou baixinho.

"O que?"

"Nada", disse rápido, mas parou por um instante ao se lembrar do beijo que Simon roubou dele. Piscou os olhos algumas vezes para tentar afastar a sensação dos lábios dele tocando os seus. "Eu não conheço ele, só esbarrei nele na rua."

"Como assim só esbarrou nele?", ela repetiu, pausadamente, como se fosse o maior absurdo do mundo. "Ele indicou nosso estúdio para trabalhar num projeto na Two31."

Wilhelm arregalou os olhos. "Como assim?"

"Exatamente isso que escutou", ela falou com uma feição amistosa que jamais tinha visto antes. "Uma tal Sara acabou de me ligar falando que fomos indicados por Simon para participarmos de um projeto."

"Você tá brincando."

"Ela marcou reunião nesta semana com a gente."

"A gente?", perguntou, não querendo acreditar que teria que revê-lo.

A vida só podia estar brincando com ele.

"Isso mesmo, eu e você", Felice falou, se dirigindo para sua sala. "Eu não sei o que você fez com ele, mas se fecharmos esse projeto, todos os nossos problemas financeiros serão resolvidos."

Sem Deixar Vestígio [Wilmon]Onde histórias criam vida. Descubra agora