XVIII

1.3K 95 37
                                    

Vida e morte.

Eram sempre as duas coisas que cruzavam a cabeça de Gabriela Guimarães ao entrar num hospital. Vida e morte, definidas por uma linha fina e trêmula de tempo. Vida e morte, dançando com nuances de ritmos, ora mais lento ora mais rápido... Ora brincando de pisar no espaço um do outro, rodopiar, se afastar e se reunir de novo. Lado a lado, sempre comandadas pelo senhor da duração dos momentos, até que por alguma razão a linha tão fina se dissipa e os dois se misturam, se borram, se unem... Até que a vida seja diluída na morte.

Gabriela Guimarães odiava hospitais. Odiava as luzes claras e o ambiente que parecia ser frio mesmo nos verões. Odiava estar dentro de um hospital – fosse por ser a paciente ou por estar à espera de alguém. As paredes sempre pareciam grossas demais, e ela se sentia como se estivesse enjaulada, supostamente esperando pela cura, realmente sendo enganada. Era sempre assim. À beira da morte, à beira da vida.

E Gabriela já tinha morrido algumas vezes dentro daquele lugar. Estar ali trazia à tona suas piores lembranças. O silêncio era plano de fundo para sussurros e bipes de máquinas. Eram sussurros de fantasmas no seu ouvido. Ela não conseguia ignorar o desconforto crescente no peito, ficava cada vez mais pesado e a busca por ar... O que tinha acontecido com o ar que parecia raro-efeito? Ou era só uma impressão? Ela apoiou os cotovelos no joelho e a cabeça nas mãos. Era só um mal-estar, ela estava bem, nada daquilo dizia respeito a ela. A cadeira parecia dura demais, impessoal demais, como um daqueles bancos quase esquecidos nos cantos menos ensolarados dos parques. Todo mundo sabe que eles estão ali, mas ninguém quer se sentar neles. Nem mesmo nos verões.

Gabriela não gostava de hospitais e verões na mesma frase. Tinha sido um erro pensar nos bandos de parques durante o verão. Porque ela estava num hospital e assimilar a estação com... Aí estava a primeira razão do desconforto. Ela sentia o sangue correr pelas mãos como se fosse a qualquer minuto vazar pela cicatriz, do mesmo jeito que sentira naquela noite em que fora atacada. Antes de conhecer Sheilla. Antes de morrer pela primeira vez.

Ela fechou a mão em punhos e abriu de novo, consciente demais da cicatriz ali. Repetiu o movimento algumas vezes até se certificar de que não havia dor – nem sangue. Fazia tempo que não pensava em Bruno. Fazia tempo que não pensava em morte. Era aquele maldito lugar tirando o melhor de si, tentando torturá-la de novo. Ela sentiu a mão de Sheilla lhe acariciar as costas e o gesto trouxe certo conforto. O que ela teria feito sem Sheilla naquela época? O que teria acontecido se não tivesse sido a morena a lhe ajudar com trauma, se Gabriela tivesse se afastado como tentara fazer antes?

Voltar para a delegacia depois da recuperação – física – tinha sido um inferno. Uma salva de palmas era exatamente o tipo de recepção que ela esperava e recebera, mas para ser honesta ela nunca se importara. Não melhorava as coisas. As palmas eram destinadas à antiga Guimarães, e ela estava morta. Pelo menos uma grande parte dela. Tinha sido difícil tolerar os pesadelos. Completamente doloroso as sessões de fisioterapia. Gabriela se recusava a ir ao psicólogo, e quando soube que só seria liberada para trabalhar novamente se comparecesse às sessões, ela compareceu. Quando o homem lhe disse que a recuperação era lenta, ela soltou um comentário sarcástico sobre a observação dele. Não bastando isso tudo, ainda tinha a nova médica legista. Irritante, meticulosa, Wikipédia ambulante. Atraente, mas sobretudo extremamente inteligente e antissocial. Quase fria. A Rainha dos Mortos. Era maldade, mas logo todos estavam a chamando assim. Exceto Gabriela que já não se importava com muita coisa, tão pouco com um mero apelido ridículo. Nunca tinha conversado com a médica, considerando que passou um mês inteiro na mesa fazendo papelada, sem pegar casos novos. Enquanto a reputação de Rainha dos Mortos acrescentava nerd-sabe-tudo, Gabriela ignorava a presença da mulher no trabalho. Até que um dia repetia o mesmo gesto que estava fazendo agora no hospital.

Sobre Amor, Tartarugas e Novas ChancesOnde histórias criam vida. Descubra agora