XXVII

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Gabriela acordou para o dia – se é que ela poderia usar a palavra "acordar", considerando que mal dormira – e deslizou para fora da cama deixando Sheilla e Lina, que tinha acordado aos berros, amedrontada no meio da noite, dormindo.

Havia algo queimando dentro dela. Algo borbulhando em sua garganta, e presa na imobilidade da cama com sua mulher nos braços e sua criança dormindo profundamente em cima de seu estômago. Ela não conseguia se livrar, e ela havia lidado e sufocado a sensação até o momento que pôde, mas que tinha se acumulado a tal ponto que agora parecia que iria explodir.

Então ela tinha substituído seu corpo entre os braços de Sheilla por um travesseiro – uma manobra demorada e delicada para não acordar a morena – e havia reajustado Lina na cama, de forma a ficar perto o suficiente da mulher, mas numa distância segura para não rolar para cima dela.

Agora, no quarto de yoga de Sheilla, o mesmo quarto que ela havia pendurado um saco de areia, ela colocava as luvas de boxe. O dia clareava lentamente lá fora, e embora fosse tão novo e promissor, a morena não conseguia deixar de sentir e reviver o dia anterior. O medo quando ouviu as palavras de Natália pelo telefone. A raiva que brotou rapidamente dentro de si quando a mulher lhe contou em poucas palavras o que havia acontecido. A angústia ao encontrar Sheilla ferida, com sangue escorrendo do rosto. E Deus, o hematoma roxo que estava se espalhando por sua pele quando Gabriela a ajudou a tirar a blusa para tomar banho.

Ela ainda não tinha processado o dia anterior, e, se antes as mãos tremiam de medo ao volante no caminho apressado para casa, agora elas se fechavam firmemente em punhos, direcionadas ao saco de areia com toda força que ela conseguia juntar. Ela não sabia dizer ao certo o que sentia, apenas conseguia identificar o emaranhado de emoções se enroscando uma na outra, grudando em sua garganta e impedindo-a de respirar.

Ela socou ainda com mais força o saco de areia num impulso de raiva por sentir lágrimas queimarem seu rosto. Não era justo. Nada disso estava certo. Ela deveria ter protegido Sheilla e Lina. Sheilla estava machucada, ela não estava. Lina estava tão assustada que parecia entregue ao medo, no escuro, na noite anterior quando Gabriela chegou ao quarto para acalmá-la. Os olhos desamparados foram cobertos pelas pequenas mãos no momento em que Gabriela andou em sua direção, depois de ter acendido a luz. Lina estava com medo dela? Não. Ela só estava assustada. Ela chorou no colo da detetive e pediu para que a mulher não a soltasse. Ela perguntou de Sheilla enquanto a detetive trocava sua roupa molhada – Gabriela imaginou que as noites a partir de agora iriam ser muito parecidas com essa, até que o trauma fosse diminuído a ponto de não existir mais – e a levou para o quarto para checar a morena. Gabriela a ninou no colo até que ela voltasse a dormir, e só então se deitou na cama de novo, com a menina enroscada em seu pescoço. Lina estava amedrontada. Gabriela não estava. Ela estava?

Os socos no saco de areia se tornaram tão fortes que mesmo com a luva as mãos começaram a doer. Você não tem nenhum direito de chorar. Ela se repreendia enquanto as lágrimas corriam livremente pelo rosto, e ela tentava em vão impedi-las. Furiosa, ela finalmente decidiu por arrancar as luvas e limpar os olhos. Você não está machucada. Você não foi ameaçada e violentada. Sem direito de chorar.

As mãos pressionavam o rosto com força, numa tentativa de secar as lágrimas e limpar qualquer evidência delas. Ela não estava em lugar para derramar uma única sequer. Sheilla podia chorar, Lina podia chorar. Elas viveram minutos de medo e assombro, mas ela? Não, ela nem estava lá. O direito de chorar não havia sido concedido à ela.

Ainda assim, as lágrimas...

– Não. – Ela murmurou enquanto sentava no chão e pressionava os olhos com as mãos. Ela encolheu os joelhos e encostou o rosto neles, esperando que a sensação que estava dominando seu corpo sumisse. Ela abraçou as pernas e se balançou levemente, respirando fundo, tentando se convencer de que o movimento combinado com a respiração regular ajudaria no processo de dissolução daquilo que estava matando-a por dentro.

Sobre Amor, Tartarugas e Novas ChancesOnde histórias criam vida. Descubra agora