CAP. 19 - CONTATO DIRETO

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ISABELLE

O gosto do sangue dela está fresco em minha boca, como a primeira real possibilidade de inexistência. Por mais de um século, afirmei que a imortalidade não passava de um fardo, o que não deixa de ser verdade, mas de algum modo ainda não tinha me colocado em tamanho risco, embora a chance para isso estivesse sempre tão perto. É como estar a poucos passos do abismo, mas nunca dar o passo final.

Cada parte dos seres celestes parece estar fortemente ligada à destruição de seres como eu, se o hibridismo com os licantropes tiver falhado em seres como Caleb, o que causaria em mim? É essa exata incerteza que me faz estar sentada de frente para o sol, mesmo sentindo cada detalhe de seus efeitos em meu corpo, enquanto ele se põe.

A porta do cômodo é aberta por Emily, que para em pé, como se esperasse algo. A sensação de dor que senti ao lhe ver entre mim e Luana não foi nova e não teve relação com o provável contato que elas duas possam ter desenvolvido tão rápido. O claro de seus olhos me lembra o âmbar dos olhos de outra pessoa, alguém que já não existe. E isso só me deixa mais próxima, mais vulnerável. O último rosto que eu gostaria de ver agora é o de Emily, mas não consigo sentir energia para mandá-la embora.

— O que foi aquilo? — sua voz me desperta e evito olhar para ela, que anda de um lado para o outro. Ela caminha para fechar a cortina da janela do quarto e acender as luzes. Volta a ficar parada — Não dá... Eu juro que tento, Isabelle. Que droga você tem na cabeça? Se um hibridismo com os celestes é praticamente impossível com seres como eu, o que te manteria viva? Sinceramente, não dá. Você a conhece desde criança, que droga...

Encaro sua postura revoltada, minha visão percorre até chegar em seu rosto. Os poucos raios de sol que ainda entram fazem os seus olhos ganharem uma coloração interessante. Os cabelos presos e os braços cruzados. Observo cada detalhe e outra vez sinto uma vontade quase inexplicável de apenas tê-la mais perto.

Outra vez, exatamente como há poucos minutos, Emily vê demais. Me vê demais. Sua raiva não desaparece, mas ela não a externa, permanece firme. O sangue de Luana pode estar afetando os meus sentidos? Nego-me. Seria tão simples arriscar, deixar Emily me conhecer, mas é por não me imaginar lhe machucando, lhe matando, que noto o risco disso para mim.

— Ainda não amei tantas pessoas para ter tantas perdas, as únicas que tive foram os meus pais. Eu os perdi. Perdi para estar aqui. Ainda dói e eu não imagino uma dor maior que perder minha mãe — o seu olhar cai para o chão. — Mas eu não tento te forçar a sentir também, pois eu encaro sozinha, sou forte para isso. Você pode ter séculos, mas quer saber o que eu acho? Não tem coragem de sentir sua dor, de ver realmente o quão doloroso pode ser o que tem aí dentro, por isso foge e faz outras pessoas sofrerem...

— Você não sabe nada! — sinto-me irritada e a interrompo. — E a Luana não sabe nada sobre mim, se ela tiver te falado...

— Não sobre isso. Você mesma me falou.

A proximidade de suas palavras me desorienta e só quero ficar longe, ir embora e deixar esse lugar por anos outra vez. E eu até sei um lugar para ir. Minha mente começa a traçar rotas de fuga, abandonar essa busca idiota e me reorganizar para compreender a espécie de Caleb.

— Qual é a sensação de ser vulnerável outra vez? — Emily se aproxima, minha expressão a manda ficar longe, mas ela ignora.

— Não chegue perto — digo, ela continua ignorando.

— Como é estar com incertezas sobre a vida como eu e a Luana sentimos?

— Eu deveria ter te matado... — minha voz sai mais baixa do que imaginei.

~~~

EMILY

É como se cada detalhe de Isabelle agora me mostrasse traços que eu não via antes. A instabilidade de sua voz e a insistência em não me olhar de frente me mostra sua crescente fragilidade. Pela primeira vez, não consigo pensar nela me encurralando com um instinto assassino.

Tudo isso pode ser apenas algum efeito do sangue de Luana, nunca vi o desenvolvimento de um hibridismo, não sei como funcionaria. E não, sei que ela não se arrepende de tudo isso.

— O dia no posto de gasolina, as mortes na loja de conveniência e aquela história de se perder em mim não foi uma ilusão. Eu não sei Emily... — sento-me ao seu lado no sofá. — Chega um ponto que as coisas perdem o sentido, mas você pode estar certa...

Isabelle se movimenta rapidamente e me beija. Seu movimento é tão impulsivo que não tenho tempo para surpresa. Meu coração parece parar e lembro da outra noite, de sua mesma proximidade e outra vez a veja se distanciar, mas lhe seguro perto. Por um instante não racionalizo como sempre, mesmo sabendo do arrependimento que sentirei.

Tão impulsivamente quanto se aproximou, ela se afasta, sem me permitir segurá-la, para longe do sofá. Mesmo longe, sinto a sensação de sua boca e admito que não foi algo ruim, que queria continuar. Incrivelmente, não foi ruim, foi como uma explosão que jogou tudo para longe. Seus olhos estão perdidos e ela só sai do quarto balançando a cabeça. A porta se fecha atrás dela.

A Última Vampira (2ª edição) - Livro UmOnde histórias criam vida. Descubra agora