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ao teatro. O Cassino abria os seus salões, como os abria o Clube, como os abria o Congresso, todos três fluminenses no nome e na alma. Eram os tempos homéricos do teatro lírico, a quadra memorável daquelas lutas e rivalidades renovadas em cada semestre, talvez por um excesso de ardor e entusiasmo, que o tempo diminuiu, ou transferiu, - Deus lhe perdoe, - a coisas de menor tomo. Quem se não lembra, - ou quem não ouviu falar das batalhas feridas naquela clássica platéia do Campo da Aclamação, entre a legião casalônica e a falange chartônica, mas sobretudo entre esta e o regimento lagruísta? Eram batalhas campais, com tropas frescas, - e maduras também, - apercebidas de flores, de versos, de coroas, e até de estalinhos. Uma noite a ação travou-se entre o campo lagruísta e o campo chartonista, com tal violência, que parecia uma página da Ilíada. Desta vez, a Vênus da situação saiu ferida do combate; um estalo rebentara no rosto da Charton. O furor, o delírio, a confusão foram indescritíveis; o aplauso e a pateada deram-se as mãos, - e os pés. A peleja passou aos jornais. "Vergonha terna (dizia um) aos cavalheiros que cuspiram na face de uma dama!" - "Se for mister (replicava outro) daremos os nomes dos aristarcos que no saguão do teatro juraram desfeitear Mlle. Lagrua." - "Patuléia desenfreada!" -

"Fidalguice balofa!

Os que escaparam daquelas guerras de alecrim e manjerona hão de sentir hoje, após dezoito anos, que despenderam excessivo entusiasmo em coisas que pediam repouso de espírito e lição de gosto.

Estêvão é uma das relíquias daquela Tróia, e foi um dos mais fervorosos lagruístas, antes e depois do grau. A causa principal das suas preferências, era decerto o talento da cantora; mas a que ele costumava dar, nas horas de bom humor, que eram todas as vinte e quatro do dia, tirantes as do sono, essa causa que mais que tudo o ligava aos "arraiais do bom gosto" dizia ele era, -

imaginem lá - era o buço de Mlle. Lagrua. Talvez não fosse ele o único amador do buço; mas outro mais férvido duvido que houvesse nesta boa cidade. Um chartonista maquiavélico, aliás escritor elegante, elevava o tal buço à categoria de bigode, compreendendo sagazmente que, se o buço era graça, o bigode era excrescência; e ele nem ao lábio da Lagrua queria perdoar.

- Oh! aquele buço! exclamava Estêvão nos intervalos de uma ópera, aquele delicioso buço há de ser a perdição da gente de bem! Quem me dera ir encaracolado por ali acima, até ficar mais próximo do céu, quero dizer dos seus olhos, e ser visto por ela, que me não descobre na turba inumerável dos seus adoradores! Querem saber uma coisa? Ali é que ela há de ter a alma, e eu quisera entreter-me com a alma dela, e dizer-lhe muita coisinha que tenho cá dentro à espera de um buço que as queira ouvir.

Estêvão era mais ou menos o mesmo homem de dois anos antes. Vinha cheirando ainda aos cueiros da Academia, meio estudante e meio doutor, aliando em si, como em idade de transição, o estouvamento de um com a dignidade do outro. As mesmas quimeras tinha, e a mesma simpleza de coração; só não as mostrara nos versos que imprimiu em jornais acadêmicos, os quais eram todos repassados do mais puro byronismo, moda muito do tempo. Neles confessava o rapaz à cidade e ao mundo a profunda incredulidade do seu espírito, e o seu fastio puramente literário. A colação de grau interrompeu, ou talvez acabou, aquela vocação poética; o último suspiro desse gênero que lhe saiu do peito foram umas sextilhas à sua juventude perdida.

Felizmente, que só a perdeu em verso; na prosa e na realidade era rapaz como poucos.

Posto fizesse boa figura na Academia, mais prezava do que amava a ciência do Direito.

Suas preferências intelectuais dividiam-se, ou antes abrangiam a Política e a Literatura, e ainda assim, a Política só lhe acenava com o que podia haver literário nela. Tinha leitura de uma e outra coisa, mas leitura veloz e à flor das páginas. Estêvão não compreenderia nunca este axioma de lorde Macaulay - que mais aproveita digerir uma lauda que devorar um volume. Não digeria nada; e daí vinha o seu nenhum apego às ciências que estudara. Venceu a repugnância por amor-próprio; mas, uma vez dobrado o Cabo das Tormentas disciplinares, deixou a outros o cuidado de 

A Mão e a Luva (1874)Onde histórias criam vida. Descubra agora