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nosso jardineiro é homem que sabe do seu ofício.

Aquele natural acanhamento da primeira ocasião foi desaparecendo aos poucos, e a conversa veio a ser, não tão familiar, como outrora, mas em todo o caso menos fria do que a princípio estivera. Havia, contudo, uma diferença entre os dois: ele, sem embargo do desembaraço, sentia-se abalado e comovido; ela, porém, vencido o sobressalto do princípio, mostrava-se tranqüila e fria, sempre polida e grave, risonha às vezes, mas de um risonho à flor do rosto, que não lhe alterava a serenidade e compostura.

O sítio e a hora eram mais próprios de um idílio, que de uma fria e descolorida prática.

Um céu claro e límpido, um ar puro, o sol a coar por entre as folhas uma luz ainda frouxa e tépida, a vegetação em derredor, todo aquele reviver das coisas parecia estar pedindo uma igual aurora nas almas. Estas é que deviam falar ali a sua língua delas, amorosa e cândida, em vez da outra, cortês, elegante e rígida, que a nenhum deles desprazia, decerto, mas que era muito menos voluntária nos lábios de Estêvão.

Guiomar falava com certa graça, um pouco hirta e pausada, sem viveza, nem calor.

Estêvão, que a maior parte do tempo ficara a ouvi-la, observava entre si que as maneiras da moça não lhe eram desnaturais, ainda que podiam ser calculadas naquela situação. A Guiomar que ele conhecera e amara era o embrião da Guiomar de hoje, o esboço do painel agora perfeito; faltava-lhe outrora o colorido, mas já se lhe viam as linhas do desenho.

A conversa durou cerca de três quartos de hora, uma migalha de tempo para ele, que desejara muito mais. Mas era preciso acabar; ela foi a primeira a dizer-lho.

- O senhor fez-me perder muito tempo. Há talvez uma hora que estamos aqui a conversar.

Era natural, depois de dois anos. Dois anos! Mas o que não era natural, continuou ela mudando de tom, era atrever-me a falar com um estranho neste déshabillé tão pouco elegante...

- Elegantíssimo, pelo contrário.

- O senhor tem sempre um cumprimento de reserva: vejo que não perdeu o tempo na academia. Vou-me embora. São horas da baronesa dar o seu passeio pela chácara.

- Será aquela senhora que ali está no alto da escada? perguntou Estêvão - É ela mesma, respondeu Guiomar. Está à espera que lhe vá dar o braço.

E com um gesto friamente fidalgo, estendeu a mão a Estêvão, dizendo:

- Passe bem, senhor doutor, estimei vê-lo.

Estêvão tocou-lhe levemente a mão, fina e macia, e inclinou-se respeitoso.

A moça caminhou para casa. Ele acompanhou-a com os olhos, admirando a gentileza com que ela, desta vez a passo acelerado, resvalava por entre as árvores até subir as escadas da casa. Viu-a dar o braço à madrinha, descerem e seguirem vagarosamente pelo mesmo caminho por onde Guiomar seguira da primeira vez.

Estêvão ainda ficou algum tempo encostado à cerca, na esperança de que ela olhasse ou dirigisse os passos para aquele lado; ela porém, passou indiferente, como se nem da existência dele soubera. Estêvão retirou-se dali cabisbaixo e triste, batido de contrários sentimentos, cheio de uma tristeza e de uma alegria que mal se combinavam, e por cima de tudo isso o eco vago e surdo desta interrogação:

- Entro num drama ou saio de uma comédia? 

A Mão e a Luva (1874)Onde histórias criam vida. Descubra agora