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resguardá-la do rigor benigno da temperatura, manto que ela sacudiu dali a nada, a fim de se mostrar qual era, uma deliciosa e fresca manhã fluminense. Não tardou que o sol batesse de chapa nas águas tranqüilas e azuis, e nessas colinas onde o verde natural ia alternado com a alvura das habitações humanas. Vento nenhum; apenas uma aragem, branda e fresca, que parecia o último respirar da noite já remota, e que só a trechos agitava as folhas do arvoredo.

A chácara naquele dia era a mesma que nos outros, mas Guiomar achou-lhe um aspecto novo e melhor, uma como expansão divina que animava as coisas em redor dela. Toda alma feliz é panteísta; parece-lhe que Deus lhe sorri de dentro da flor que desabrocha, do fundo da água que serpeia murmurando, e até de envolta com o cipó humilde e rústico, ou no seixo bronco e desprezado do chão. Era assim a alma de Guiomar naquela manhã. Nunca as árvores, as flores, a grama rasteira lhe pareceram mais vicejantes; o sentimento interno hauria aquela vida exterior, do mesmo modo que o pulmão bebia o puro ar matinal.

De envolta com essas sensações comuns a toda a alma, havia ainda as que eram dela -

dela, que via ali o seu último sol de moça solteira e contemplava por antecipação a aurora nova, o dia longo e feliz de suas férvidas ambições. Neste ponto despia a sua fantasia as asas de folha agreste, com que andara a pairar no meio daquela vegetação, para envergar outras de seda e brocado, e voar sabe Deus a que sítios de grandeza humana.

O acaso quis que naquela manhã vestisse o mesmo roupão com que Estêvão a vira do outro lado da cerca, e trouxesse no colo e nos pulsos o mesmo broche e os mesmos botões de safira. Não tinha o livro; mas, em falta desta circunstância, havia outra, que era a mesma daquela célebre manhã, havia uns olhos que do outro lado da cerca a espreitavam namorados. Não eram, porém, os mesmos; eram os do noivo, com quem ela foi encontrar os seus; - e o mais doloroso de tudo é que nem a cerca, nem os demais acessórios, nada lhe lembrou o outro homem que morria por ela. A felicidade é isto mesmo; raro lhe sobra memória para as dores alheias.

Não menos alegre do que ela parecia a baronesa naquele dia. De longe em longe surgia-lhe na memória a idéia do sobrinho, mas já não havia tristeza de não ter efetuado o casamento, como desejara; tão leve foi o golpe em Jorge e tão indiferente andava ele, que a boa senhora compreendeu que o amor, se existira, não era grande, e sobretudo não perdurou; a idéia de que isto mesmo podia acontecer-lhe ao cabo de seis semanas de casado, fê-la dar graças a Deus do nenhum êxito de seus planos.

Mrs. Oswald igualmente se mostrava feliz - talvez ainda mais, porque era-o aparatosamente, como se quisesse resgatar as passadas culpas. Guiomar entendia a intenção latente das manifestações ruidosas com que ela andava a felicitá-la; mas o dia não era de rancores nem de ressentimentos, e ela recebia sorrindo as cortesanices da inglesa.

O casamento fez-se, enfim. As lágrimas que a baronesa derramou, quando viu Guiomar ligada para sempre, foram as mais belas jóias que lhe podia dar. Nenhuma mãe as verteu mais sinceras; e, seja dito em honra de Guiomar, nenhuma filha as recebeu mais dentro do coração.

Na noite do casamento, quem olhasse para o lado do mar, veria pouco distante dos grupos de curiosos, atraídos pela festa de uma casa grande e rica, um vulto de homem sentado sobre uma lájea que acaso topara ali. Quem está afeito a ler romances, e leu esta narrativa desde o começo, supõe logo que esse homem podia ser Estêvão. Era ele. Talvez o leitor, em lance idêntico, fosse refugiar-se em sítio tão remoto, que mal pudesse acompanhá-lo a lembrança do passado. A alma de Estêvão sentiu uma necessidade cruel e singular, o gosto de revolver o ferro na ferida, uma coisa a que chamaremos - voluptuosidade da dor, em falta de melhor denominação. E foi para ali, contemplar com os indiferentes e ociosos aquela casa onde reinava o gozo e a vida, e naquela hora que lhe afundava o passado e o futuro de que vivera. Não o retinha a constância do estóico; pela face emagrecida e pálida lhe corriam as lágrimas derradeiras, e o coração, colhendo as forças que lhe restavam, batia-lhe forte na arca do peito. 

A Mão e a Luva (1874)Onde histórias criam vida. Descubra agora