leitor; transcrevo apenas e fielmente as imaginações do namorado; fixo nesta folha de papel os vôos que ele abria por esse espaço fora, única ventura que lhe era permitida.
No meio dessas visões foi acordá-lo Luís Alves.
- Tens razão de sentir, disse este; mas não gastes o coração, que há maiores surpresas na vida... Em todo caso, deixa-me dizer-te que nenhuma razão tens de censura...
- Censuro eu alguém?
- Há no amor um gérmen de ódio que pode vir a desenvolver-se depois. Talvez chegues a acusá-la de te não querer; nesse dia reflete que os movimentos do coração não estão nas mãos da vontade. Ela não tem culpa se outro lhe despertou o amor.
- Ah! Incumbiu-te da defesa!
Luís Alves sorriu; ele contava com a recriminação.
- Não, não me incumbiu da defesa, disse ele; sou eu que a tomo por minhas mãos. Que defendo eu aqui senão a natureza, a razão, a lógica dos sentimentos, dura e inflexível como toda a outra lógica? Há no fundo das tuas palavras um sentimento de egoísmo...
- O amor não é outra coisa, respondeu Estêvão sorrindo por sua vez. Queres que inda em cima lhe agradeça este desespero? Queres que vá apertar a mão ao homem que a soube vencer?
Luís Alves mordeu a ponta do lábio e acercou-se da janela. Quando ia a voltar para dentro ouviu um rumor na janela ao pé, a primeira da casa da baronesa. Luís Alves deu um passo mais.
Não viu ninguém; viu apenas o resto de um vestido que fugia e um objeto que lhe caía aos pés.
Inclinou-se a apanhá-lo. Era uma grande folha de papel envolvendo, para lhe dar mais peso, outra folha pequena dobrada em quatro. Luís Alves aproximou-se da luz, e leu rapidamente o que ali vinha escrito. Leu, meteu o papel na algibeira e encaminhou-se disfarçadamente para a janela.
Ninguém; a casa da baronesa dormia.
Quando voltou para dentro, Estêvão tinha-se levantado. Ele vira cair o papel, apanhá-lo e lê-lo Luís Alves. Não entendeu nada do que se passara; mas seu olhar como que pedia uma explicação.
Luís Alves foi direito ao fim.
- Estêvão, disse ele, vais saber a verdade toda; não poderia ocultar-te o que se há passado, nem conviria talvez que tu a soubesses por boca de outro. Guiomar podia amar-te, eras digno dela, e ela digna de ti; mas a natureza não os fez um para o outro. São duas almas excelentes que seriam infelizes unidas. Quem há aqui que censurar? Mas se a natureza explica o sentimento dela, igualmente explica o de um terceiro, que sou eu. Tu confiaste-me as dores e as esperanças de teu coração; era conhecer toda a minha amizade e a profunda estima que sempre te consagrei. Mas nem tu nem eu contávamos comigo; porque também eu tenho coração, e os prestígios da beleza também falam à minha alma. Não a pude ver a frio. A paixão obscureceu-me. Nesta minha felicidade de amar e ser amado, acredita que sou alguma coisa infeliz, porque há lágrimas tuas, há o teu padecer longo e cruel, que eu imagino e deploro. A confissão é franca; não te falo em arrependimento, porque são atos do coração e não da consciência, que essa é pura e honrada. E
depois desta exposição fiel, cuido que lastimarás comigo o encontro em que o acaso ou a má sorte nos reuniu a todos três; mas não me acusarás nem me recusarás a tua velha estima. Falo só da estima; a amizade, creio que não poderá ser a mesma. Mas prezarás o meu caráter. Pela minha parte, nem uma nem outra coisa perece; sei o que vales. Não sei aonde nos lançará a onda do destino amanhã. Pela última vez, porém, espero que apertarás a mão do teu amigo.
Luís Alves concluíra estendendo-lhe a mão. Estêvão olhou para ele, mas não disse uma só palavra, não fez um gesto único: caminhou para aporta e saiu.
- Estêvão! gritou Luís Alves.
Mas só lhe respondeu o rumor dos pés que desciam, e pouco depois o do tílburi que rolava surdamente na terra úmida da praia.