e consolada a um tempo, no seio do velho amigo e companheiro. A cada trecho da confissão plena que ele ali lhe fez, respondia um comento, ora sério, ora gracioso de Luís Alves. Quando Estêvão porém lhe deu notícia de que a família da baronesa ia para a roça, Luís Alves recolheu o meio-riso que lhe pousava nos lábios desde começo, e com a mais súbita e sincera admiração, exclamou:
- Para a roça!
- Disse-o agora mesmo a baronesa.
- Mas...
Luís Alves não acabou; olhou ainda meio duvidoso para Estêvão, e ficou algum tempo calado, a coçar o queixo com a faca de marfim e a olhar para uma gravura que pendia na parede fronteira.
- Na situação em que estou, continuou Estêvão, hás de dizer que a viagem é uma felicidade para mim. Pois não é; não admito a viagem. Se ela sair da Corte, eu saio também.
- Tu estás doido!
- Talvez.
Luís Alves saiu daquela natural indiferença com que o ouvia, e lhe falava sempre em tal assunto. Falou-lhe carinhoso - talvez pela primeira vez na vida. O que lhe disse foi apenas uma edição aumentada do que lhe havia dito em anteriores ocasiões - agora com maior fundamento, porque depois do formal desengano de Guiomar, não havia outro recurso mais que ir esquecê-la de todo.
- Oh! isso nunca! interrompeu Estêvão. Demais, não sei, não estou certo se ela falava de coração naquela tarde...
A candidez com que Estêvão disse isto era a fiel tradução de seu espírito, e a razão de tais palavras, não a procure o leitor em outra parte mais que não seja aquele sorriso de há pouco, ao pé do carro, sorriso que lhe bailava no cérebro, como raio de sol coado por entre nuvens negras de tempestade.
Luís Alves sacudiu a cabeça e enfiou os olhos pelas folhas rabiscadas de uns autos que tinha diante, e que entrou a folhear vagarosamente. Súbito, bateu uma pancadinha, com a mão espalmada sobre os papéis, e levantou a cabeça:
- Há um meio talvez de saber tudo, disse ele, de saber se ela verdadeiramente te ama, ou...
Posso tentá-lo, com uma condição.
- Qual?
- A condição de eliminares as tuas pretensões. Que diabo ganhas tu em nutrir uma paixão sem eficácia nem remédio?
Esta promessa era a mais dura que se podia arrancar de um coração, em que as gerações de esperanças se sucediam quase sem solução de continuidade; fê-la, todavia, Estêvão, talvez com a secreta resolução de a trair.
Luís Alves ficou só, daí a alguns minutos. As últimas palavras que disse ao colega foram duas ou três pilhérias de rapaz; mas apenas ficou só tornou-se sério, e inclinando o corpo para a frente, com os braços na secretária, e a raspar as unhas com um canivete, ali esteve largo tempo, como a refletir, longe de Estêvão, que aliás já não ia perto, e ainda mais longe dos autos que tinha diante de si. Mas em que pensava ele, se não era em Estêvão, nem nos autos, nem também, por agora, nas suas esperanças eleitorais? Paciência, leitor; sabê-lo-ás daqui a nada. Contenta-te com a notícia de que, ao cabo de vinte minutos daquela abstração, Luís Alves volveu a si, proferindo em alta voz esta simples palavra:
- Não há dúvida; é uma ambiciosa.
E descativado daquela preocupação, enterrou-se de todo na leitura dos autos.