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assombro, com os olhos parados, a boca entreaberta, fugindo-lhe a vida e o sangue todo para o coração.

A moça chegara à cerca; esteve de pé algum tempo, olhou em derredor e por fim sentou-se no banco que ali havia, dando as costas para o jardim de Luís Alves. Abriu novamente o livro, e continuou a leitura do ponto em que a deixara tão só consigo, tão embebida no livro que tinha diante, que não a despertou o rumor, aliás sumido, dos passos de Estêvão nas folhas secas do chão. Teria percorrido meia página, quando Estêvão, reclinando-se sobre a cerca, e procurando abafar a voz para que só chegasse aos ouvidos dela, proferiu este simples nome:

- Guiomar!

A moça soltou um grito de surpresa e de susto, e voltou-se sobressaltada para o lado donde partira a voz. Ao mesmo tempo levantara-se. A impressão que lhe produzira, e não sei se também algum ar de cólera que lhe notasse no rosto; e além de tudo, o remorso de não haver sufocado aquele grito de seu coração, fez com que Estêvão, quase no mesmo instante, murmurasse em tom de súplica:

- Perdoe-me; foi uma centelha do passado que estava debaixo da cinza: apagou-se de todo.

Guiomar, - sabemos agora que era este o seu nome, - olhou séria e quieta para o seu mal-aventurado interruptor, dois longos e mortais minutos. Estêvão, confuso e vexado, tinha os olhos em terra; o coração palpitava-lhe com força, como a despedir-se da vida. A situação era em demasia aflitiva e embaraçosa para que se pudesse prolongar mais. Estêvão ia cortejá-la e despedir-se; mas a moça, com um sorriso de mais piedade que afeto, murmurou:

- Está perdoado.

Caminhou para a cerca e estendeu-lhe a mão, que ele apertou, - apertou não é bem dito, -

em que ele tocou apenas, o mais cerimoniosamente que podia e devia naquela situação.

E depois ficaram a olhar um para o outro, sem se atreverem a dizer nada, nem a sair dali, a verem ambos o espectro do passado, aquele tão amargo passado para um deles. Guiomar foi a primeira que rompeu o silêncio, fazendo a Estêvão uma pergunta natural, como não podia deixar de ser naquelas circunstâncias mas ainda assim, ou por isso mesmo, a mais acerba que ele podia ouvir:

- Há dois anos que não nos vemos, creio eu?

- Há dois anos, murmurou Estêvão abafando um suspiro.

- Já está formado, não? Lembra-me ter lido o seu nome...

- Estou formado. Sabe que era o desejo maior de minha tia...

- Não a vejo há muito tempo, interrompeu Guiomar; eu saí do colégio, logo depois que o senhor seguiu para S. Paulo. Saí a convite da baronesa, minha madrinha, que lá foi buscar-me um dia, alegando que eu já não tinha que aprender, e que me não convinha ensinar.

·

Decerto, assentiu Estêvão. - Minha tia é que não deixou nem podia deixar de ensinar; acabou no ofício.

- Acabou?

- Morreu.

- Ah!

- Morreu há cerca de um ano.

·

Era uma boa criatura, continuou Guiomar, depois de alguns instantes de silêncio, muito carinhosa e muito prendada. Devo-lhe o que aprendi... Está admirando esta flor?

Estêvão, apanhado em flagrante delito de admiração, não da flor mas da mão que a sustinha, - uma deliciosa mão, que devia ser por força a que se perdeu da Vênus de Milo, Estêvão balbuciou:

- Com efeito, é linda!

- Há muita flor bonita aqui na chácara. A baronesa tem imenso gosto a estas coisas, e o 

A Mão e a Luva (1874)Onde histórias criam vida. Descubra agora