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Sao Paulo, 20 de janeiro de 1925.

A casa, imponente, ficava num endereço sofisticado. Era pouco depois das 18 horas e a escuridão já havia tomado o céu de São Paulo. Três horas após o início do tormento.

A tensão na sala de visitas lindamente decorada era quase palpável. Pessoasse reuniam em pequenos grupos, algumas falando num tom baixo e grave, outras irrompendo em choro, ocasionalmente. Algumas consolavam, outras se mantinham apartadas de tudo, em silêncio. Helena pertencia ao último grupo, sentada solitária numa poltrona igualmente sofisticada.

Parecia calma enquanto olhava para o tapete claro sob seus pés, indiferente a tudo. Mas o fato era que ela não estava indiferente. Cada movimento, cada som fazia sua mente reverberar. Se movesse um músculo, seu autocontrole, mantido a tão duras penas, ruiria como um castelo de cartas.

Quando a terrível notícia chegara, Helena fora arrebatada por um terror incontrolável. Tentaram colocá-la na cama. Tentaram fazê-la tomar calmantes para livrá-la do tormento. Tentaram mantê-la desligada de tudo. Ela se recusara. O que mais poderia fazer? Como uma mãe poderia refugiar-se no sono num momento como aquele?

Mas não havia nada mais torturante do que a espera. Tinha que esperar pelo homem que era o centro daquela crise, pelo homem que chegaria para controlar a situação. Já lhe haviam informado que ele estava a caminho, como se a notícia pudesse fazê-la sentir-se melhor. Nada, porém, poderia curá-la daquele horror.

Nada. Ninguém.

Portanto, lá estava ela, olhos baixos para que ninguém pudesse sentir sua aflição, para que ninguém pudesse ver a palidez de sua pele.

O som repentino de um carro freando diante da casa deixou a todos em estado de alerta. Helena não se mexeu, nem ergueu os olhos. Ouviu-se o som de vozes no hall de entrada, uma delas destacada pelo tom incisivo e autóritario. Os passos, firmes e precisos, aproximaram-se da sala de visitas. Todos dentro da sala voltaram-se quando a porta se abriu, os olhos ansiosos cravados no homem que apareceu à soleira. Helena, entretanto, manteve os olhos fixos no tapete, contando cuidadosamente as linhas cinzas que faziam parte do padrão do tecido.

Alto, atlético, cabelos negros, corpo rijo. Camisa branca, gravata escura, terno cinza, com o caimento característico de uma seda cara. O rosto tinha um bronzeado natural, realçando o nariz longo e reto, a boca resoluta e sensual. E os olhos... Eram olhos de um caçador, de um predador. Dourados, como os olhos de um tigre. Frios, como as linhas do rosto. Um homem talhado em pedra.

Ele ficou parado à porta por longos e cruciais segundos, mantendo a todos em suspense. Os olhos frios perscrutaram o ambiente até encontrar Helena , sentada em seu esplendor solitário, o rosto baixo, distante. O homem se aproximou, os movimentos sinuosos como os de um felino, e parou diante dela.

- Helena? - chamou em tom baixo.

Ela não se moveu. Os olhos focalizaram debilmente o par de sapatos de couro feitos a mão.

- Helena! - Dessa vez, havia um tom mais autoritário naquela voz.

Os olhos enevoados subiram lentamente, contemplando as longas pernas, o torso poderoso. Finalmente, os olhos verdes encontraram os do homem que ela desejara jamais voltar a ver.

Há quanto tempo não o via? Quase três anos? E, nesse tempo todo, ele mudara muito pouco. Mas por que haveria de mudar? Afinal, Marco Salvatore era forte, poderoso, podia se dar ao luxo de ter tudo o que queria. Nascera para o poder, criara-se no poder e usava o poder. Quando erguia a voz, as pessoas se intimidavam. Era um homem que possuía tudo: boa aparência, um corpo perfeito e saudável, inteligência aguda. O que três anos poderiam mudar? O olhar, talvez? Poderia ser mais inclemente? Afinal, ele era o inclemente. Ela, a pecadora.

O mês seguinte faria três anos, lembrou Helena. Três anos de um silencioso ressentimento. Três anos desde que decidira abandoná-la. E agora ele tinha a ousadia de aparecer e de chamá-la pelo nome, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Mas não era. Ambos sabiam que não era. E Helena não estava em condições de agir como se nada tivesse acontecido. Ela desviou o olhar.

Nesse momento ele falou outra vez. A mensagem soou alta e clara. Todos ouviram, ofegantes:

- Saíam!

Marco permaneceu parado diante de Helena, esperando que sua ordem fosse cumprida. As pessoas saíram da sala em silêncio: os quatro policiais, o motorista taciturno com uniforme, a babá em lágrimas, com o rosto afundado num lenço, a governanta solene e seu marido, o faz-tudo da casa, o médico que fora chamado para cuidar da senhora da casa.

Ela ouviu a porta fechar quando a última pessoa saiu, deixando-os no mais absoluto silêncio. Marco se afastou, retornando alguns segundos depois com um copo.

- Beba! - ordenou, sentando-se ao lado dela.

O aroma característico de uma bebida alcoólica muito forte invadiu as narinas de Helena . Ela balançou a cabeça, espalhando os cabelos ruivos e longos por ombros e braços. Ele ignorou a negativa.

-  Beba! - repetiu. - Está pálida como um fantasma. Beba, ou terei que forçá-la a isso.

As palavras foram mais do que uma advertência. Isso ficou muito claro quando Marco segurou o queixo de Helena com dedos fortes. Ela bebeu, mas engasgou quando o líquido deslizou como fogo por sua garganta seca.

- Assim está melhor - ele murmurou, sem saber que fora seu toque, e não a bebida, que a fizera engasgar. - Beba um pouco mais.

Ela obedeceu, procurando proteger-se do terror que experimentava. Seu corpo ainda reagia de modo violento ao contato físico com aquele que lhe causara tanta dor e desilusão. Ele a fez beber vários goles até decidir que já era o bastante. Então Helena ergueu os olhos, cheios de condenação.

- Foi você que fez isso? - indagou, as palavras raspando a garganta tensa.

Marco queria negar, usando os olhos para perguntar como ela poderia suspeitar que fosse capaz de algo tão hediondo.

- Eu o odeio - ela prosseguiu. - Desprezo o chão em que pisa. Se algo acontecer a minha filhinha, é melhor se cuidar. Irei atrás de você até o fim do mundo, nem que seja a última coisa que eu faça!

Surpreendentemente, ele não respondeu nem reagiu. Nunca fora um homem que se deixasse ameaçar.

- Conte-me o que aconteceu. - pediu, impertubável.

A imagem voltou violenta à mente de Helena: a babá entrando cambaleante na sala, o rosto banhado de lágrimas. "Isa foi sequestrada!", ela gritara, assustada. " Simplesmente apareceram e levaram-na enquanto estávamos brincando no praça!"

A lembrança acordou-a do torpor.

- Você sabe o que aconteceu! - vociferou, fulminando-o com os olhos brilhantes. - Ela significa a única humilhação de sua vida, Marco! Por isso decidiu eliminá-la.


Era uma vez... a dor de uma traição.Onde histórias criam vida. Descubra agora