Capítulo nove

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Fechei a porta do banheiro devagar e encarei meu reflexo. Procurei por algumas cicatrizes e até me belisquei ao ponto da pele ficar arroxeada. Isso realmente poderia acontecer? Um sonho tão realista. Eu esperei acordar e perceber que tudo foi imaginação.

Mas, a rotina se manteve e eu me mergulhava numa euforia inexplorada. Como  fui parar no meu corpo jovem? Por que eu era capaz de lembrar de cada dia vivido e não sentir mais a tristeza e a dor do luto? Todas as vezes que a noite chegava eu fechava os olhos pedindo para que tudo fosse verdade.

—  Carol, temos que sair agora se quiser chegar a tempo da missa.

Lembrava do vestido amarelo que ao findar da tarde estaria com manchas marrons por causa do meu irmão caçula de quatro anos.  Será que eu poderia impedir que ele se machucasse? Encarei o reflexo no espelho e rapidamente parei de franzir o cenho, um sorriso orgulhoso quando entendi que aos dezoito anos, ou pelo menos esse corpo, não tinha que temer expressões e o dever de algumas aplicações de botox.

— Carolina.

— Eu já vou, nossa que apressado! — lamuriei ao caminhar em direção a Igor que empurrava os cabelos ruivos para trás, o único gesto de sua impaciência, incrível como nossos filhos eram parecidos nessa demonstração.

Será que Augusto e Amanda estavam bens? O que de verdade poderia ter acontecido? 

— O que foi, Carol?

Já no carro, um clássico Fiat Uno 1996 vermelho, presente do vovô Benedito, eu não tinha ideia do que responder para meu namorado.

— Por que a pergunta?

— Você está agindo mais estranha do que o costume — Igor respondeu e fez um pigarro ao me encarar, com certeza eu não estava com uma expressão amigável — Amor, está tudo bem?

— Sim?!

Oh, definitivamente eu não sabia o que responder, como contar que no momento sou bem mais velha que ele. Arregalei os olhos e abri a boca, com certeza uma nova careta. Eu recordava cada um dos doze anos que convivemos juntos e não era possível esconder essa intimidade.

O fato de segurar minha mão agora e entrelaçar nossos dedos de maneira que seu polegar esfregue a unha do meu tinha o único intuito o de me acalmar. Ainda faltavam anos para que eu ocupasse essa iniciativa a cada sessão de quimioterapia de Igor.

— Me desculpa, eu não sei bem o que está acontecendo comigo nesse instante.

— Ei — Igor segurou meu queixo,  dando um leve selinho em meu nariz —  Não precisa ficar nervosa por estarmos juntos, a família vai entender e tenho certeza que tio Guilherme sabe o quanto eu te amo.

Arfei.

— Eu te amo também.

Respirei fundo, enquanto tentávamos chegar mais rápido a Leotie, é claro que estacionamos o mais perto da trilha em direção a capela; eu conseguia me lembrar perfeitamente das flores em arranjos discretos percorrendo a passarela formada pelos vinte bancos de madeira, todas as janelas abertas e até da barra do vestido branco de renda encostando nos tornozelos.

— Um dia vamos nos casar bem aqui — disse, envolvendo o braço de Igor.

— Desde que possamos evitar chamar a atenção agora — Igor murmurou, guiando-me para um dos bancos mais afastados. 

Assumo que dificilmente chegávamos no horário, nos primeiros três anos de relacionamento até mantivemos dois meios de transporte, mais a bicicleta que eu recusava usar por pensar em todo esforço físico. 

Em Um SomOnde histórias criam vida. Descubra agora