Um século mais tarde, ele tem um humano preso pela garganta, suas garras a um passo de perfurar a pele fina. Não deveria haver nada de especial quanto a isso, não é a primeira vez, ele ainda mata, ele ainda come, mas, dessa vez é diferente, ele não está ali para saciar a fome.
Há poucas criaturas nesse mundo que sejam inteligentes o suficiente para cumprir algumas tarefas e entregar recados, ele sabe que os caçadores usam seus corvos, ainda que ele tenha tempo para treinar um para si, ele não tem a disposição para tal. Com sua posição, comandar onis inferiores seria o mais lógico, contudo, esses mesmos onis possuem aquela ligação, e seu próximo colaborador deve estar isento de tais amarras. É o que o traz ao agora.
Por um ciclo lunar, ele acompanhou silenciosamente o vai e vem de uma cidade próxima a capital. Qualquer humano não serviria, ainda que fossem seres racionais, nem todos estavam aptos, ele busca por duas características essenciais, uma mente perspicaz e o apego emocional. Para a tarefa que será empregada, se fazia necessário investigação, o humano deveria ter contatos e saber quais perguntas fazer, para que ele não o traísse ou tentasse qualquer estupidez desesperada, o humano deveria ter uma fraqueza. Família, podia ser sua força, mas também a causa de sua destruição, se o humano tivesse algo ao que proteger, o medo de perder o manteria na linha.
A magistrado era corrupto em grande parte, havia entretanto, como tudo no mundo, exceções, esses que muitas vezes eram apenas jovens sonhadores, condenados a terem esses ideias pisados, antes de se tornarem apenas mais um daqueles velhos odiosos. O homem que é seu refém, ainda retém parte desses sonhos, ainda que estes comessem a desvanecer diante da mancha que os próprios humanos nutria contra os seus. O homem tem um posto descente no magistrado, assim como uma esposa e filho recém nascido. Ele serviria ou morreria.
—︎ O que-que você quer? Por-por favor, não me mate!—︎ Seu tom é esganiçado, seus olhos esbugalhados e cada vez mais vermelhos.
—︎ Você fará algo para mim, não irei matá-lo, primeiro seria sua família, só então, você, se me desobedecer ou trair.
Lágrimas grossas descem quando o humano agarra seu braço, uma tentativa débil de se libertar.
—︎ Por favor, não-não os machuque! Eu farei, farei o que for!
Se Kokushibo fosse outro, ele teria sorriso satisfeito. Ele sabe que aquela lealdade não é real, nada vindo do medo pode ser. Porém, por tanto que os resultados desejados fossem alcançados, ele trabalharia com o que tinha. Conquistar confiança genuína, advém de ações inefaveis, ele não era bom e nunca seria.
—︎ Estarei observando.—︎ Ele o avisa, seu olhar pesado sobre o humano trêmulo, enquanto em sua mente, uma peça já faltava.
O que ele pediu para o humano fazer?
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Akaza era um bom lutador, seu crescimento foi rápido, ele não se queixava de quão árduo fosse suas seções de treino, se algo, seu sorriso crescia, em êxtase pela batalha. Em algum ponto, o desgosto pela situação pareceu minguar, de ambos os lados, se fosse para ser sincero. Foi útil ter algo para cortar, algo que não desapareceria ou morreria, assim, possibilitando seu próprio aperfeiçoamento.
Entre o antes e o agora, ele sabe que é mais forte, o poder que crescer em si, é maior que outrora. Ainda que haja um limite, uma retenção, ninguém poderia ser mais poderoso que o mestre, é um conhecimento inerente, está no sangue.
As múltiplas luas retalham mais impiedosas, Akaza não reclama de qualquer dor, mas recua, seus membros voltam a crescer em um piscar. Logo, seus punhos atingem o ar, há um balho estrondoso, antes que Kokushibo retenha a pressão com sua lâmina, então outra e outra. Akaza ficou mais rápido, mesmo a força empregada em seus golpes foi multiplicada. Ainda... Kokusibou fecha a distância entre eles, a percepção do oni mais jovem teria detido o avanço de qualquer caçador e muitos onis, mas não é páreo para sua técnica, sua lâmina o corta ao meio, é a dispensa da noite, aquela sessão estava terminada.
—︎ Merda.—︎ Akaza cospe ao mesmo tempo que tenta juntar suas duas metades, sua regeneração é rápida e mesmo o grande dano, não o deixa no chão muito mais.
—︎ Você melhorou.—︎ Kokushibo nunca disse algo semelhante, ele se resumia a apontar suas falhas e era isso, caberia ao oni mais jovem sana-las. Nunca houve elogio ou incentivo, assim, os olhos surpresos e a boca meio aberta com espanto era em partes esperado.
—︎ O que-que?—︎ Akaza se atrapalhou com as palavras, se erguendo e se afastando, desconfiança começando a substituir a surpresa inicial.
Indiferente a palhaçada, Kokushibo guardou sua lâmina, antes de encarar o outro.
—︎ Aquele favor, irei requere-lo em breve.
As feições de Akaza ficaram mais serias, seus lábios em uma linha fina, as sobrancelhas franzidas. Eles nunca estipularam um limite ou condições, assim, era direito de Kokushibo pedir qualquer coisa e Akaza não poderia recusar, se não por honra, apenas porque Kokusibou era muito mais forte e poderia esmaga-lo por sua falsidade.
—︎ Diga.—︎ Ele forçou por entre dentes cerrados, sua postura tensa.
—︎ Não há um dia certo, mas o farei saber quando esse chegar. Nesse dia, faça algo grande, algo para atrair toda atenção a você.
Akaza piscou, ele passa os dedos pelos cabelos rosados, pensativo.
—︎ Isso é fácil, farei como pedido e então, estamos quites.
Olhos dourados deslizam até os seis, eles se espremem, parecendo bilhar na meia luz, um toque de suspeita presente ali, suspeitas as quais o mais jovem sabiamente não dá forma, mas que não o impede de acrescentar:
—︎- Se você for fazer algo estúpido, me mantenha de fora.
—︎ Hm.—︎ É toda sua reposta aquela sentença inocente.
Akaza já estava dentro, Muzan não perdoa, se eles voltassem atrás, ainda seriam... O que? Não importa.
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Quase dois anos depois, no início do outono, o humano o cumprimenta com uma reverência. Seus olhos não encaram aqueles três pares, é desconcertante para o mortal e Kokushibo não se importa em repreende-lo, é de seu interesse que ele continue a teme-lo.
—︎ Diga-me o que descobriu.—︎ Ele o comanda sem delongas.
Seus encontros sempre são breves, nenhum deles está muito ansioso para prolongar suas reuniões, cada qual por seus próprios motivos.
—︎ Senhor, eu a achei, dessa vez, tenho certeza de que é quem você busca.—︎ Depois de sua décima reunião, o homem abandono o patético gaguejar.
Quem ele buscava?
—︎ Onde?
—︎ Segui alguns rumores e consegui que um dos meus subordinados fosse atendido por ela, definitivamente a mulher guarda os mesmos traços oferecidos pelo senhor, além de haver histórias entre seus pacientes, sobre suas técnicas e fisionomia inalterada com o decorrer dos anos.—︎ O homem diz, antes de retirar um envelope de suas vestes, o mesmo está lacrado e não há nada em seu exterior que entregue o conteúdo.—︎ Como orientado, aqui tenho sua localização. Por favor, senhor, tenha-o.—︎ Ainda curvado, suas mãos bronzeadas deslizam o envelope em direção ao demônio.
Sem mais contemplar, Kokushibo recolhe o envelope, não pesa nada, mas parece cheio de significado, ele apenas sabe. Kokushibo se vira, antes de deixar por completo o cômodo, entretanto, ele diz:
—︎ Você e sua família estão livres.—︎ Não há agradecimento, mas o suspiro que deixa o humano o faz ter certeza de que essas palavras são muito melhores que qualquer obrigado.
A cada passo, suas feições mudam. Seus olhos se fecham, até que reste um único par, aqueles perdem suas cores inumanas, as marcas em sua face permanecem. Ele caminha para o centro, onde o mercado noturno ainda segue agitado, com pedestres indo e vindo, jogando palavras e risadas. O barulho enche sua mente, confundindo qualquer pensamento, é perfeito. Ele ainda não abre o envelope, primeiro, ele fará Akaza saber que era hora, sua dívida seria cobrada.
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Antes e Depois (Hiatus)
FanfictionKokushibo morreu e assim permaneceu. Até que não foi. Ele acorda anos antes, ainda um oni, mas com todas suas memórias do que aconteceu e aconteceria. Isso muda algo?