Para lembrar

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O menino traz a visão de um fantasma, seus olhos seguem cada ondulação dos brincos quando seu portador se move, o boken zumbindo a cada corte no ar. O menino é mais expressivo, ele não nasceu com o talento, assim ele treina, seu esforço é o que o faz melhorar, o crescimento é lento, mas carrega pontencial. Semelhantes sim, porém, divergentes em tantos outros aspectos.

Logo será inverno novamente, quase um ano desde que ele mantém os irmãos sob sua guarda. Seu tempo já não mais carrega a ilusão de infindável, ele adia o real propósito de os manter, para que tenha suas jogadas em ordem, minimizando os danos. Assim que o menino tocar uma espada real, assim que ele respirar o fogo abrasador do sol, Kokushibo sabe, a mera visão daquela técnica terá a atenção daquele homem, o trauma profundamente marcado em suas células.

Antes do amanhecer ele o dispensa. O menino se curva e adentra a velha mansão. Kokushibo sabe pra onde ele vai, o menino mantém uma rotina, ele não esconde seu afeto pela irmã, sentimentos assim poderiam ser uma fraqueza, mas também sua força, o oni não é tolo para não reconhecer isso, não depois de tudo. Enquanto aquele afeto continuasse a impulsionar o menino, ele não tinha porque o cortar. Agora, ele estava disposto a jogar com isso, esses sentimentos humanos, afinal, tivera mais peso que a força bruta, pelo menos até certo ponto. As luas eram poderosas, muito mais que qualquer humano, ainda, mesmo que ele não tenha presenciado o fim daquela batalha, algo o faz pensar que os vencedores foram mortais e suas feridas não iriam sumir, mas ainda iriam cicatrizar.

Ele se move para a lápide, em seu íntimo, o que se seguirá, não será um alento a memória de seu irmão, ele não está o fazendo com esse intuito, ele não quer perdão. Em suas vestes, uma carta ainda dobrada queima, o deixando super ciente de sua presença. O gato demônio o deixou tantas luas antes, ele já esqueceu o que diz, ele não lembra quem a escreveu, mas é algo esperançoso, para o menino e sua irmã, para outros que desejam a humanidade. Não é para ele, assim como não busca perdão, ele não pensa em ser humano, em sua essência, até o âmago, ele é um oni e continuará como um.

Ainda, ele não se desfez da carta, ele se vê ponderando os méritos de a entregar ao menino, ver o quanto isso o faria ainda mais forte, força vinda da vontade, para proteger e salvar. Esses pensamentos deixam um gosto amargo, é tão humano, essa esperança, uma corda frágil que poderá e irá romper ao menor deslize.

Em um movimento, ele retira o papel, seus dedos o amassando. É melhor se desfazer disso de uma vez, os riscos são maiores que valem a pena, o menino continuará independente dele. Uma rajada de vento faz o pequeno jarro em frente a lápide tombar, as flores caem é se espalham. Kokushibo guarda o papel em sua manga, logo recolhendo o jarro ao seu lugar devido, mais tarde, quando for noite novamente, ele trará novas flores.

Uma presença conhecida faz a ligação em sua mente mais presente, alerta para proximidade. Ele previu que isso aconteceria, o outro demônio não se mantém longe por muito tempo, atraído pela proposta de melhorar, para estudar seu próximo oponente, almejando outra subida na hierarquia. Em realidade, ele está surpreso que tenha sido quase um ano agora, o maior lance de tempo passado distante desde que aquele acordo se fez.

Ainda que não seja esperado, ainda se faz inconveniente, no melhor dos casos, apenas um incômodo, como uma farpa no dedo. Há uma agitação se formando, ele pode ouvir, há madeira rangendo, gritos do menino. Ele se vira, de volta para a mansão velha, era melhor terminar aquilo de uma vez, seria inconveniente buscar outro abrigo agora.

Mais perto, há o cheiro de sangue, não muito, mas como o outro oni tende a ser, ele sabe que essa situação logo mudará. Em um instante, ele localiza o estardalhaço, no próximo, ele desliza entre o demônio de cabelos rosas e o menino curvado, sua testa sangrando, sua respiração ofegante enquanto segura trêmulo uma velha e familiar espada, uma que ele manteve guardada cuidadosamente em seu quarto. A espada está quebrada, parte de sua lâmina repousa atrás de Akaza, esse que pisca para sua chegada repentina, antes de ter seu rosto afundado e seu corpo lançado, quebrantado a parede de madeira e fazendo parte do teto ceder.

Antes e Depois (Hiatus)Onde histórias criam vida. Descubra agora