Prelúdio

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Sua lamina clica na bainha quando ele a guarda. Seus olhos varrem sobre o campo arruinado, nenhum deles estava sendo cuidadoso ali, aquele confronto foi um desabafo esperado, ele já havia aceito isso quando manipulou o laço e forçou memórias antigas a superfície. Ter sido mais cruel não tinha nada a ver com a provocação do outro oni, nada mesmo.

Akaza ainda está no chão, seu tronco se regenerando do último golpe, mesmo quando os ossos estalam no lugar, com carne e músculos se costurando, ele não parece que vai se erguer, os olhos dourados no céu que ganha leves tons de roxo. Logo eles teriam que buscar refúgio, até lá, Kokushibou o deixaria com suas contemplações, enquanto se volta para o túmulo, o único pedaço de terra que havia se mentido preservada, ele foi cuidadoso com isso.

O jarro com flores tombou, ele o recolhe e descarta as pétalas amassadas, a caixa com a flauta está coberta de poeira, com a barra de suas mangas ele a limpa, indiferente a mancha que deixa na roupa. Ele tem uma sensação, agora que começou a se mover de que essa será uma de suas últimas visitas em muito tempo, é algo agridoce, algo que ele não contempla muito mais.

Pelo canto do olho, ele nota Akaza se sentar, seus olhos dourados o observando em seu trabalho de cuidar do túmulo sem nome. Pelo vínculo ele sente leves traços do humor do outro, Akaza está mais calmo, a fúria inicial pareceu esfriar, ainda que com seu temperamento, Kokushibou apostava que surgiria muito facilmente, em especial agora que a confusão ainda era bastante presente, confusão induzida pelas memórias, pelos sentimentos residuais.

- Ainda não entendo porque você mantém isso, é apenas uma pedra estúpida.- Sua voz é calma, por mais que suas palavras quase soem como uma provocação, Kokushibou sente principalmente curiosidade.

Com o céu mais claro, o oni mais velho endireita sua postura, traçando um caminho mais limpo por entre os buracos de terra e grama seca. Ainda que não se volte para Akaza, ele sabe que o mesmo o segue.

- Você tem sua reposta.- Kokushibo diz depois de um tempo.

- Uma lembrança, você disse.- Seu tom é mais petulante, ainda que pareça contemplativo, quando o silêncio se estende até que eles vejam a mansão.- Porque conservar algo assim? Lembranças de quando era humano, quero dizer. É quase como apreciar sua fraqueza, quando poderia morrer e perder tão facilmente.

Em algum momento Kokushibo talvez tenha pensado assim, uma parte de si ainda o faz. Contudo, ele morreu, ele lembrou, ele contemplou sua vida e escolhas e onde aquilo o levou. Havia mais que ser um demônio, que ter poder, foi nisso que aqueles assassinos se agarraram, cada qual com suas próprias crenças, todos humanos, inerentemente inferiores e eles ainda venceram. Ele poderia dizer isso, mas esses pensamentos, essas lembranças, ainda não era o momento de manifestá-las, assim, ele as afastou, deixando apenas a essência daquela concepção.

- Esquecer é fugir, é algo para covardes. Mesmo como humano, há detalhes que não desejo deixar ir.- Essas palavras soaram tão diferentes dele, ainda, não pareciam apenas uma mentira para instigar o outro.

Akaza não diz nada mais, não até muito mais tarde, quando o sol já está quase se ponto e ele se prepara para sair.

O oni mais jovem anda ocioso, fazendo a madeira velha ranger com seu peso. O sol desce, os últimos rais deslizam por pequena frestas no corredor. Não muito longe, ele pode ouvir o menino, pelo som rítmico, o mesmo ainda devia está tentando concertar a parede quebrada.

O quanto o menino era dedicado e disposto, qualquer um diria que esse era um bom filho, um bom irmão, uma boa pessoa. Kokushibo não liga para a bondade, nesse mundo, depois de tanto ver e viver, ele realmente espera que o menino endureça ou seu caminho seria mais difícil que qualquer outro. Ele supõem que o menino entenderá no devido tempo, ele estave lá no final, afinal.

- Não consigo entender.- Akaza disse de repente, o trazendo de seus devaneios.

Suas olhos se voltam para o oni de cabelos rosados, esse havia parado, seus orbes dourados observando o chão intensamente, como se lá pudesse encontrar qualquer reposta as suas perturbações.

- Você é o mais forte entre nós, ainda sim, guarda essas concepções estúpidas, sobre memórias humanas e agora esse pirralho, um fracote que você protege e treina.- Seus olhos se apertaram, observando a agitação de Akaza, como suas palavras aumentavam em tom, temperada pela tempestade que o perturbou durante todo esse tempo.- Apenas isso o devia fazer mais fraco, ainda sim, não o faz.

Akaza para por um momento, soltando um suspiro profundo, enquanto seus olhos brilham e seus punhos apertam, antes que ele o esteja encarando.

- Não entendo nada dessa merda, duvido que realmente o queria. Ainda, não posso deixar de pensar nessas memórias, seja lá o que você fez com esse laço estúpido, faça novamente, quero saber o que elas significam.- Mais baixo, ele acrescenta.- Preciso saber.

Kokushibo fecha seus olhos, sua expressão em branco, enquanto ele separa as muitas emoções que vem do laço das suas próprias. A verdade era, independente da escolha de Akaza, ele continuaria a empurrá-lo, era necessário, ainda, ter tido seu consentimento, tornaria o processo mais rápido, foi um acontecimento bem vindo, além de garantir essa parceira frágil que eles mantinham.

- Como faremos isso?- Akaza pergunta, mais convicto agora.

- Gatilhos, um objeto, um evento, alguém que lhe desperte qualquer familiaridade, são coisas que facilitam em trazer suas memórias.

- Foi isso que aconteceu com os fogos de artifício e aquele pirralho.- Não foi exatamente uma pergunta, mas Kokushibou ainda acenou levemente em concordância.- Como isso funciona exatamente? Como saber o que buscar?

- Tente se expor a múltiplos eventos, em suas viagens busque por mais que o lírio e não me empurre quando acessar o laço, assim saberei o que lhe trará alguma lembrança.

- Tudo bem, posso fazer isso.

Akaza acenou mais uma vez, seus olhos ainda brilhantes e seus lábios em uma linha fina, parecendo preparar-se para uma difícil missão. No mais, aquele tinha que ser a conserva mais longa que tiveram e a única que não acabou com o oni mais jovem faltando alguns membros. Felizmente tentar a civilidade tinha seus benefícios, o menino já tinha trabalho o suficiente, tirar manchas de sangue não devia ser uma tarefa muito divertida.

Com o sol ausente, Akaza se voltou para o corredor, pronto para partir, entretanto, se deteve mais uma vez, dizendo:

- Essas lembranças, você também as vê?

Pelo laço Kokushibo sentiu seu desconforto, era uma sensação desconcertadamente frágil, triste, não condizente com o perfil demonstrado naquele momento pelo o outro demônio.

- Não, eu não o faço.

Não foram palavras para o confortar, era apenas a verdade. Kokushibou não estava interessado em ter as memórias de Akaza, tudo que ele precisava era que o mesmo as recuperasse.

Porque?

Não importa. Ele o faria.

- Entendo.- Akaza sussurrou e sem despedidas partiu.

Daquele ponto em diante, cada vez que Kokushibou trilhava seu caminho pelo laço forjado, esse se expandia mais, disposto, ainda que arisco. Não apenas as consequências de recuperar as memórias de Akaza estavam em andamento, como a obtenção de mais confiança, foram resultados muito melhor do que ele havia esperado.

Naquela mesma noite, ele leva o menino para o campo arruinado, onde a lua e aquela lápide solitária, são as únicas testemunhas quando ele o guia pelos movimentos da primeira forma do sol.

Antes e Depois (Hiatus)Onde histórias criam vida. Descubra agora