Sangue na neve

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A casa de chá é quente mesmo no inverno, cheira a ervas e doce, é agradável. A janela mais próxima está fechada, a manhã lá fora apenas começou. O sol, ainda que meio coberto por nuvens pesadas, é um risco e ele não é um tolo.

O chá é quente em seu paladar, mas não possui gosto ou faz qualquer coisa para saciar a fome demoníaca. Seus olhos, camuflados, varrem lentamente pelo local, observando desinteressado os poucos mortais que ali transitam.

Faz muito tempo que ele não interage com humanos, não houve necessidade e ainda não há. Contudo, agora havia uma pequena ansiedade, uma expectativa muda. Ele não sabia ao certo, mas parecia procurar ou esperar por algo. Com um olhar frio, ele detém seu aperto sobre a pequena xícara quando essa range em sua mão.

É nessa era quando aquela batalha acontece, ele não lembra ao certo a data, quando se vive tanto é esperado que alguns detalhes pequenos escapem. Assim, resta o constante estado de espera. Em segundo plano, ele tateia em busca daquela ligação, está lá, mas fácil de achar, mais firme em sua essência. Até então, ele nunca a usou para algo mais intrusivo que localizar o oni irritado do outro lado, mas em seu íntimo, ele apenas sabe que poderia forçar além, talvez pegar um pensamento ou outro, mesmo lhe enviar uma mensagem, as possibilidades lhe aguardava, foi útil.

Com uma leve contração de sobrancelhas, ele se afastou, havia sido muito tempo, recentemente, talvez há algumas décadas já, Akaza parecia suspeitar de algo, pois estava melhor em empurrá-lo, era como receber um tapa e um arranhão de um gato ranzinza. Subir em sua classificação pareceu deixá-lo mais ousado. Com uma olhadela para fora, Kokushibo vê a luz acinzentada, ainda restavam algumas horas antes que ele pudesse rastrea-lo e o retalhar, seria bom praticar com sua lâmina.

Distraído de suas contemplações pelo deslizar da porta, ele mais uma vez, observou a luz cinzenta da manhã, certo de que a mesma não iria chegar a sua localização, distante como estava, meio oculto na parte mais escura do estabelecimento. Não incomodado, seu olhar cai sobre o chá esquecido, seus demais sentidos são atraídos para a nova presença, enquanto essa se volta para a senhora idosa na recepção.

-︎ Shyo-san, gostaria de algum carvão?-︎ É um menino, sua voz vivida e gentil.

-︎ Oh! Tanjiro-kun, já faz um tempo, claro, gostaria de alguns.

Há o farfalhar de roupas e então um baque mais alto, pelo canto dos olhos, o oni ver a cesta de palha. O menino se curva sobre a cesta, suas vestes verde xadrez, deslizando ao seu redor, mas nada disso importa realmente, não quando ele pega a imagem daqueles brincos.

Por um momento, ele está em outro tempo, ainda humano, enquanto outro homem, com aqueles mesmo brincos, lhe chamava por um nome há muito esquecido.

Quando o oni se move, o menino já saiu, a luz cinzenta cai sobre seus fios vinho e ele sorri, acenando em despedida. Tão semelhantes, mas tão diferentes. Yoriichi esteve mais contido em suas emoções, seus sorrisos foram mais suaves e raros.

Kokushibo para no limiar, onde a luz cinzenta permanece como uma armadilha mortal. Ele ainda é incapaz de alcança-lo, mesmo agora, principalmente agora.

O menino se afasta, os brincos balançando a cada passo. Ainda é como ver um fantasma, ele quer estender sua mão, agarra-lo e arrasta-lo, para poder dizer aquelas palavras, essas que permanecem enterradas, sempre uma pressão em seu peito quando contempla a lápide sem nome.

Aquele não era Yoriichi, sequer um descendente, mas ainda um legado.

Aquele era Tanjiro Kamado, o menino que respirava sol.

Naquela outra vida, antes de sua morte, ele nunca o conheceu realmente. O quanto Muzan estava fixado no menino e sua irmã, seria impossível para Kokushibo não saber sobre o mesmo. Ainda que possuísse esse conhecimento, entretanto, ele não sentiu qualquer impulso de ir ao seu encontro, sequer confrotá-lo, afinal, seria apenas uma miragem de seu irmão, uma que sequer se comparava ao original, assim, foi irrelevante.

Antes e Depois (Hiatus)Onde histórias criam vida. Descubra agora