12: A Sociedade Secreta Dos Garotos Aquileanos

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Eu sou um idiota

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Eu sou um idiota.
 
Não de um tipo simples, como alguém que faz um comentário ligeiramente inoportuno no meio da sua roda de amigos e pede desculpas logo depois, mas de uma forma mais complexa do que eu poderia imaginar. Talvez, até mesmo indelével; que não pode ser apagado das ondas gravitacionais que compõem o espaço-tempo. Algo quase infinito, e que, por isso, me faz sentir ainda mais culpado.
 
O mundo além da janela do quarto se transmuta numa imensidão celeste de astros mortos bordados no tecido emagrecido do céu, riscando a realidade à minha frente com seu pulsar frenético. Ao meu redor, há rabiscos de Rubel permeando as paredes, citações de poetas seculares presas em post-its e dois pôsteres pendurados perto da porta; um de Tim Maia e outro de Barão Vermelho. Porem, nenhum deles é tão grande quanto a bandeira trans que tinge boa parte de uma das suas paredes com as faixas azul, róseo e branco, circundada por estrelas de plástico que brilham no escuro.
 
Uma prateleira abarrotada de livros de capa descascada se ergue atrás de mim, há poucos centímetros da cama em que estou, com uma planta-jiboia estendendo seus ramos azulados na direção ao piso, e uma escrivaninha se desenha alguns metros ao meu lado, abrigando um rádio e a coleção de CDs e DVDs que meu amigo possui perfeitamente empilhados em um emaranhado de cores opacas.
 
Sob minhas digitais, páginas desbotadas pairam com seus ecos de fuligem e tentam, sem muito sucesso, desvencilhar meu foco da certeza pungente da minha própria imbecilidade para suas palavras imensas. É História Secreta da Segunda Guerra, de 1962; porém, com a borda de cima parcialmente queimada por uma brutal tentativa de assassinato à sua história pelo fogo.
 
Rubel o salvara de uma pilha de outros livros incendiários nos fundos do terreno do seu vizinho, cujo avô morrera recentemente e seu descendente mais novo, pelo visto, não sabia reconhecer a grandiosidade da poesia contida na coleção de escritos do falecido familiar. A maioria das pessoas não sabe.
 
Lindbergh narra seu primeiro voo de guerra, é o primeiro capítulo, o qual tento lutar contra os nós dos meus neurônios para ler. É dolorosamente poético, oceânico, brutal e cósmico. Lindbergh, diante da percepção da morte iminente do alto de um aeroplano, reflete sobre a vida; a existência.
 
Ele não era um escritor, mas inegavelmente pode ser considerado um poeta. A diferença entre esses dois termos é clara: Todos somos irremediavelmente poéticos apenas por sermos humanos. Porém, nem todos conseguem registrar no espaço de páginas vazias todos os seus versos.
 
Forço-me a me concentrar, e leio atentamente o parágrafo em que meus dedos passeiam.
 
Planetas rodopiando em torno de bolas de fogo, sóis se precipitando em velocidades celestes... precipitando-se para onde? Continuarão assim para sempre? Seguirão alguma prodigiosa órbita própria? Como pode ser infinito o universo? Mas o que poderia haver além do seu fim?
 
Pesco o lápis sobre a colcha da cama de Rubel, e grifo o que vem a seguir.
 
Perscruto os ínvios espaços onde a luz, soltando para a Lua enquanto um homem dá um passo, viaja durante bilhões de anos entre galáxias de estrelas, onde toda a duração da vida na Terra nada mais é que um momento do tempo celeste; onde há calor para valorizar o carbono, frio para liquefazer o ar, o nada imensurável, a substância da qual proveio o mundo e o homem também. Como foi criado esse universo? O que fez as leis que o regem — a perfeição matemática, a complexidade de minúcias, a simplicidade do plano, a importância de um mero átomo, a trivialidade de um milheiro de estrelas?
 
Perco o fôlego por um segundo. Somente a gravidade me mantém preso entre as paredes do quarto, estático de corpo, porém flutuando por dentro em uma agitação iridescente de moléculas complexas.
 
— Poético, não é? — Rubel rompe meu estado de divagações, caminhando até o seu rádio cor de fumaça com um DVD na mão.
 
— Se faz barulho na alma, é poesia. Então, sim. — Respondo, soprando um riso.
 
Ratos de Porão começa a reverberar em notas chiadas do aparelho eletrônico. À minha frente, Rubel sacode a cabeça ao som de música, dedilhando o ar como se tocasse uma guitarra imaginária. O caleidoscópio de luzes das correntes de piscas-piscas com miniaturas de caveiras penduradas nas paredes do quarto irradia nos seus largos ombros desnudos, salpicando de cor os meridianos das suas costas riscadas abaixo das escápulas por uma faixa compressora preta, que ocasionalmente usa para deixar o peitoral mais plano.
 
Uma calça jeans cinza rasgada nos joelhos escorrega levemente pelo seu quadril, deixando à mostra a barra da cueca branca, de cujo centro escapa uma singela trilha de pelos mais grossos em direção ao seu abdômen. Rubel é algo abstrato demais para ser definido, mas, ainda assim, eu tento às vezes. Ele é poesia indomável, incandescência, todas as cores reunidas em uma mistura explosiva de torpor e desvario. É o dono do meu primeiro beijo, que guardo até hoje entre as gavetas do meu coração. Foi graças a ele que me entendi como um garoto que também gosta de garotos.
 
— Cacete, Rubel, já vi que não vou conseguir terminar de ler. — Finjo chateação.
 
Ele se vira para mim, ainda se movendo no embalo da música, e sua risada grave ondula meus tímpanos.
 
— Por quê?
 
Esboço um meio sorriso.
 
— É que você sem camisa tira a minha concentração. Gostoso demais.
 
Ele arqueia as sobrancelhas, incrédulo.
 
— Vou fingir que você não está dando em cima de mim.
 
Despejo um riso.
 
— Uma amizade boa precisa disso.
 
— Não, uma amizade boa precisa de dança maluca. — Aponta para mim, o anel prata cintilando no seu indicador. — E festa.
 
— Por favor, qualquer coisa menos isso. — Torço o nariz em uma careta.
 
— Qual é, Cosmos. Tá chegando o Halloween! A gente tem que comemorar!
 
Não conheço ninguém que goste tanto dessa data comemorativa como meu amigo. Todo ano, ele faz questão de dar uma pequena festa para os mais próximos, com bebidas tingidas com corante, luzes fluorescentes e fantasias estrambólicas.
 
— Sabe que eu muito provavelmente vou me fantasiar de fantasma de lençol de novo, não é? — Inclino-me para trás, apoiando os cotovelos sobre seu colchão.
 
— Não acredito nisso. — Sopra um riso. — Até se fantasiar de sapo é melhor!
 
Balanço a cabeça em negativa, contendo uma risada.
 
— Talvez.
 
Rubel pende a cabeça para o lado, as íris decaindo para o âmbar cintilando com uma inquietação curiosa.
 
— Você está aéreo.
 
Esvazio os pulmões em um suspiro ruidoso.
 
— Não quero pensar sobre isso.
 
— Certo. Só não vale dizer que sempre foi secretamente apaixonado por mim. — Pisca descaradamente, daquele jeito meio sexy típico dele.
 
Bufo.
 
— Claro que não. Odeio você.
 
Seu meio sorriso evidencia o quanto acredita na minha falsa declaração tanto quanto na existência de um porco voador.
 
Para a minha sorte, batidas na porta da casa ecoam pelos cômodos. Seus pais não estão na residência, como em todo sábado à noite; momento em que tiram para jantar fora ou fazer alguma outra programação de casal, e eu e seu filho, para reunirmos amigos na casa vazia de adultos.
 
— Devem ser o Aart e o Valentim. — ele teoriza, pondo-se a vagar para fora do quarto. Nós quatro reunidos formávamos facilmente uma espécie de Sociedade Secreta Dos Garotos Aquileanos.
 
Vou atrás dele. Atravessamos a sala de estar, e sua palma alcança a maçaneta, girando-a para revelar os dois garotos lado a lado. Mas não somente eles. Há um rosto familiar no encalço de ambos, com retraídos olhos cor de café que de imediato escorrem pelo dorso desnudo do meu amigo.
 
— Ah, oi. — Valentim se manifesta, erguendo as sobrancelhas ressaltadas pela sombra escura acima dos seus olhos. — A gente trouxe um amigo. É o Lukas, mas ele prefere só Kai.
 
Kai é demasiadamente magro e tem o meu tamanho. Está dentro de uma jardineira jeans de bermuda, que esconde parcialmente a camisa branca que recobre seus braços. Próximo ao bolso frontal da peça azulada, há alguns broches de dinossauros aleatórios, desenhos do estúdio Gibli e vinis.
 
Eu o conheço. É o irmão adotivo de Apollo.
 
Droga. Meus pensamentos voltam a se condensar em torno do garoto de olhos de buraco negro, preenchendo-me com uma vontade incomensurável de fugir.
 
Rubel parece paralisado, no entanto, e seu rosto está faiscando em uma centena de tons de vermelho.
 
— Ah, certo, isto é bem ótimo. Eu vou vestir uma... uma... como é o nome daquilo que se passa pelos braços? Camisa! Isso, uma camisa. Está no quarto, eu acho... minha camisa.
 
Tenho vontade de rir por um segundo do seu desconcerto. Meu amigo sempre fica assim diante de pessoas que não conhece.
 
Os garotos entram rapidamente, e eu fecho a porta. Rubel dispara para o quarto, Valentim e Aart vão gargalhando à caminho da cozinha com uma piada tosca que o primeiro fez, e não consigo deixar de reparar que Kai não para de me observar pelo canto dos olhos. Parece haver algo oculto sob a superfície das suas íris atentas, e este pensamento me deixa ainda mais inquieto. O silêncio entre nós é denso feito uma nebulosa.
 
— O... hm, o Apollo está bem? — Resolvo perguntar.
 
— Sim, sim. Quer dizer... do jeito de sempre, meio ele de ser. Tentei arrastá-lo para cá, mas ele meio que não quis. A propósito, o Pollo pediu para que caso eu te encontrasse, avisar a você que não está chateado de qualquer forma possível para se chatear, e que amanhã a Brunna vai estar trabalhando no cinema drive-in, então o planejamento de vocês vai poder ser colocado em prática. Ele disse que te busca às cinco. — Empurra a ponte dos óculos para o topo do nariz. — Aliás, quem é Brunna? Eu perguntei pro Apollo, mas ele só me disse que é uma garota que com certeza não está a fim de você porque se estivesse você saberia, e depois me pediu para não dizer essa parte porque faz parecer que ele está chateado, coisa que não está. — Aperta os cílios, torcendo o nariz em uma careta.
 
Contenho o ímpeto de bufar. Meu sangue cintila com vislumbres de uma raiva estranha.
 
Não acredito que Apollo simplesmente vai tentar fingir que nossa discussão não aconteceu. Quer dizer, é exatamente o que eu estou fazendo, mas ele não tem esse direito!
 
Praguejo em silêncio, enquanto observo Rubel despontar do quarto com uma camisa preta do Pink Floyd, tingida com o prisma acinzentado característico da banda. Ele estaciona na soleira da porta e deixa o quadril pender rumo à esquadria de madeira, cruzando os braços. A desordem cósmica que agita as ondas do seu cabelo o faz ficar ainda mais bonito.
 
— Caramba, você é lindo. — Kai solta, de súbito, para o meu amigo, com a mesma entonação que usaria para dizer qual o seu tipo de jaca favorita. — E seu nome também. Ele é tipo o nome daquele cara que canta Partilhar, e tem o álbum Pearl, que por sinal é uma das coisas mais lindas que meus ouvidos já escutaram, e olha que eles já ouviram muita coisa, tipo poesia.
 
Creio que Kai sequer se dá conta de como seu elogio soou estranhamente galante, o que eu consideraria muito adorável se não estivesse ocupado em profanar a imagem do seu irmão mentalmente.
 
Rubel despeja um riso meio sem graça, mas tenta contornar o óbvio embaraço com seu sorriso de canto sacana.
 
— Garanto que escolhi meu nome muito antes dele fazer sucesso.

Saudações, terráqueos!

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Saudações, terráqueos!

Não, eu não faço ideia do porquê quase todos os meus personagens têm problemas com um diálogo maduro sobre o que está se passando.

Ficaram com certa raiva?

Se apaixonaram pelo Rubel tanto quanto eu?

conseguiram deduzir o casal que eu estou muito inclinado a colocar como protagonistas em um livrinho futuro?

E o mais importante: gostaram do capítulo?

E da nova capinha e estética dos capítulos?

Espero que sim! :D (insira aqui mais dezenas de carinhas felizes)

Felizmente, estou perto de entrar de férias da faculdade. Espero conseguir postar capítulos com mais frequência quando as merecidas chegarem.

Fiquem bem. Beijos de nuvem pra vocês!

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