Pouco antes do meu pai biológico falecer, recebi dele em uma caixa abarrotada uma coletânea de fitas cassete e VHS que gravara durante toda a vida, muitos deles experimentais; pairando de testes de efeitos especiais até pequenos filmes caseiros. Acrescido a isso, havia também uma câmera Kodak clássica que funcionava com rolo de filme 35 milímetros.
Pelo menos cinco deles estavam na caixa, três usados e os outros dois, não. Eu me recordo de ter pego um certa vez e rabiscado dezenas de estrelas com caneta na superfície sensível da sua película amarelada, o que só foi estranhamente interessante quando descobri para que servia outro item da caixa: um monóculo prateado do tamanho do meu dedo médio, feito para ampliar qualquer foto extraída do negativo de filmes, que precisa ser inserida na parte branca frontal para ser vista através do visor do outro lado quando se olha para a luz.
Recordo-me que passei horas inteiras observando inúmeros registros pelo monóculo; fotos cheias de pessoas que eu não conheci em lugares que nunca cheguei a ver, pessoas com roupas de banho em uma praia de iluminação saturada, ruínas de antigas construções dominadas por plantas que escorriam das janelas e rostos sorridentes, alguns mais familiares do que outros; e muitos com contornos das minhas estrelas. Só era triste pelo fato de precisar recortar os rolos de filme para vê-los pelo monóculo, de modo que, se um dia eu quisesse assisti-los, precisaria remendar cada ligação - e ter em mente que não ficaria nadica igual ao original. Mas a fascinação por todo o processo manual compensava.
Foi meu pai quem me apresentou o universo fantástico das coisas clássicas: a fragilidade das invenções humanas exposta em meio a ferrugem e rangeres, o modo como tudo é facilmente ultrapassável e como muitas coisas antigas assemelham-se a máquinas de Rube Goldberg; executando tarefas simples de maneiras demasiadamente complexas através, na maior parte dos casos, de uma reação em cadeia.
Desbravar antiguidades era uma das pouquíssimas coisas que fazíamos juntos, antes de começar a recuar cada vez mais do convívio humano e viver seus dias predominantemente trancafiado no galpão.
A dissociação da realidade, o hiperfoco e por vezes os olhares assombrados que direcionava a pontos específicos da casa e a si mesmo, como se algo estivesse terrivelmente errado com o tecido diáfano da realidade, foram alguns dos sinais vermelhos que ele externalizou por quase um ano, até pouco depois do meu décimo segundo aniversário, quando a morte o engoliu ao saltar do topo do oitavo andar de um prédio em construção. Mas eu tinha certeza de que ela o espreitava muito antes do seu corpo atingir o chão.
Talvez, se houvesse tido a chance de ser diagnosticado e posteriormente aceitado a ideia de um tratamento, a sucessão de eventos trágicos que desencadearam na sua morte pudessem ter sido evitadas.
Mamãe não conseguia entendê-lo, por mais que tentasse. Pressionava-o dia após dia para arrumar um emprego decente em algum escritório, mas o que tingia suas íris não era austeridade, e sim medo. Ela temia durante todas as horas que o relógio conseguia lhe dar. Temia perdê-lo para si mesmo, da mesma forma que passou a temer por mim quando passei a manifestar sintomas quase análogos. E eu vi nos seus olhos, na noite em que precisei sair de casa em uma ambulância com dezenas de comprimidos no estômago, o mesmo vazio ocupado pela matéria escura que turge o seu universo desde o dia em que perdeu meu pai.
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O Universo Segundo Cosmos | ⚣
Genç KurguCosmos Silva, além de ter sido agraciado com um nome nem um pouco comum, teve o infortúnio de ganhar ao longo dos seus dezessete anos uma lista quase inacabável de tragédias para colecionar. Como se não bastasse ser daltônico, hipocondríaco e portad...