Capítulo 1

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Ashanti Dias//18 anos

Solidão

"estado de quem se acha ou se sente desacompanhado ou só; isolamento"

Esse é o termo que mais definiu a minha vida até o momento, preta, gorda e periférica, minhas lutas são involuntárias, mesmo se não quisesse, teria que lidar com tudo que está a minha volta, ao contexto do qual eu e os meus foram inseridos.

Minha mãe: Dona Rute, garra grande e coração maior ainda, o projeto de ser humano que eu espero um dia chegar perto de ser, tinha um sorriso lindo, que permanecia, em meio a tudo, ele permanecia, não é romantizando toda a luta dela não, só estou ressaltando como a essência dela fazia com que tudo fosse amenizado, a fome, o frio, a vontade, a necessidade, entre outros. Nascida e criada na periferia de São Paulo, mas necessariamente em Paraisópolis, minha mãe fez o possível e o impossível pra que eu tivesse um futuro diferente, ela meio que havia se "conformado" com a realidade dela, doméstica, trabalhava de domingo á domingo, tendo um domingo no mês, era a "folga", que a dona Lúcia Helena, patroa dela, falava que era mais que suficiente pra ela descansar, porque gente "como" ela era forte e resistente por natureza.

Mesmo diante tudo isso, a minha insistência de trabalhar desde os 13 anos para ajudar dentro de casa, dona Rute nunca permitiu, pelo contrário, pegava uns bicos nos domingos de folga e nas "brechas" do trabalho para pagar meu cursinho preparatório do ENEM, suprir com as minhas necessidades e pagar um curso de música, que é uma das coisas que eu mais amo na vida, como minha mãe dizia: "Pode faltar tudo, menos o alimento da alma: a música".

O curso era só pra aprender o básico mesmo e me distrair um pouco da nossa realidade, mas não perdia um dia si quer, queria e tinha que fazer o dinheiro da dona Rute valer a pena, nunca tirei abaixo de 8, tanto nos cursos, quanto na escola, gente como a gente tem que sempre estar a frente, infelizmente, não podemos dar pauta pra esse sistema nojento ter a oportunidade de pisar em nós. Bom, assim que conclui o ensino médio, fui fazer o ENEM, sofrido, o provinha em, mas graças a Deus deu tudo certo, passei na USP, em quarto lugar, queria cursar Ciências Socias e trabalhar na área de criação e desenvolvimento de ações afirmativas, pra mudar um pouco que seja a realidade dos que vem de onde eu vim.

Resolvi conseguir um trabalho e juntar um dinheiro pra me ajudar na facul, antes de ingressar na mesma, já que tinha um prazo de até 2 anos pra ingressar, e foi em meio a tudo essa felicidade que veio a pior notícia que recebi na minha vida, dona Rute descansou, ela estava no trabalho, como sempre e teve um infarto fulminante, ela sempre me ensinou que tudo tem um propósito, mas nunca me ensinou como lidar com essa dor e aprender a viver sem ela. Na verdade acho que nunca vou conseguir fazer isso, mas vou conseguir encontrar uma maneira de confortar meu coração, que ela está bem e descansando.

Faz uma semana que tudo isso aconteceu e agora eu estou aqui na laje de casa, olhando pra comunidade, me perguntando: "E agora?", o bip do meu celular atrapalha os meus pensamentos, pego o mesmo nas mãos e vou até a notificação:


"Matrix Agência,

Ashanti Dias, verificamos o seu currículo e acreditamos que o seu perfil é o que procuramos, compareça ao endereço: xxx, na data de: xxx, horário: xxx, para que possamos realizar uma entrevista presencial.

Obrigada por nos escolher."

Caramba, é dona Rute, realmente tudo tem um propósito, sei que isso não vai amenizar a minha dor, mas a notícia não poderia vir em melhor hora, já estava com a cabeça a mil, pensando em como iria manter a casa, gastos e a tão sonhada faculdade, que teria que ser adiada, pelo menos até eu me organizar e preparar pra ingressar.

Respondo o e-mail enviando os dados que eles solicitaram e agradecendo a oportunidade e após isso, faço meu ato rotineiro, ajoelho no chão e agradeço a Deus e aos orixás pela notícia, não sou muito religiosa, mas acredito em Deus, Jesus Cristo e no poder dos orixás, nossa relação é bem personalizada, digamos assim, não vou a igrejas ou terreiros, mas oro, peço e agradeço a eles tudo que acontece na minha vida.

Após terminar a oração, me arrumo pra dormir que amanhã vai ser um dia longo, mas bom, se Deus quiser.

Acordo ás 6:30, a entrevista era pertinho, aqui no Morumbi, mas queria já deixar a casa ajeitada, pra quando voltar, não ter que arrumar tudo, depois de deixar a casa um brinco, vou tomar banho, tomar um café top, pra aguentar escolher a roupa, a parte mais difícil, eu não tenho uma boa relação com o meu corpo, por mais que eu tente e me esforce para construir um processo de auto aceitação/amor, a comparação e sentimento de inferioridade me atinge e não permite que isso vá pra frente, eu queria, juro que queria, gritar aos quatros cantos que sou uma grande gostosa e me amo do jeito que sou, mas não consigo, ainda não.

Opto por uma jeans escura, camisa branca e tênis branco também, o básico, já não sou padrão, não posso exagerar, acho lindas as mulheres como eu que usam o que querem, e se sentem bem, ei não consigo, ainda não. Depois de tudo pronto, saio de casa e vou pegar o busão, o trajeto é tranquilo e chego lá antes do horário, já recebendo aquele típico olhar da recepcionista.

Bruna: Oi, a área de serviço fica na parte de trás gata, qualquer dúvida pode me chamar, ta bom? - Diz ela me olhando de cima a baixo.

Ashanti: Ah não, eu vim para a entrevista, fica no bloco 2, pode me informar onde fica, por favor? - A trato com toda a educação que a dona Rute de meu, não perco a linha fácil, é isso que eles querem, e não terão.

Bruna: Ah sim rsrs, é só virar a esquerda e pegar o elevador gata - Diz dando um sorrisinho falso.

Ashanti: Muito obrigada - Digo saindo e indo em direção do elevador.

Segui o trajeto e cheguei até o bloco, aguardei poucos minutos em uma mini recepção que havia ali e logo fui chamada por uma morena com o sorriso simpático, chamada: Débora.

Assim que entrei na sala, o frio na barriga se instalou, já tinha ido em algumas outras entrevistas antes, mas nunca em um grupo tão grande, a Matrix é uma das maiores agências do Brasil, vim concorrer a uma vaga de auxiliar da assistente pessoal de um dos artistas, eu ainda não sabia qual era, acredito que iriam falar se caso eu passasse.

Débora: Então Ashanti, eu vi que é sua primeira experiência de trabalho, certo? - Diz me olhando ansiosa.

Ashanti: Isso, é meu primeiro emprego, mas pode ficar tranquila, que mesmo nova, eu sou muito responsável viu? E aprendo rápido, não vai precisar se preocupar comigo - Digo tentando parecer o mais convincente possível, precisava muito da vaga.

Débora: Eu senti isso em você e gostei da sua energia, só mais uma pergunta pra finalizarmos, você é paciente? - Diz me olhando ansiosa, ela parecia um pouco angustiada - É que o artista que você vai trabalhar é um pouquinho difícil de lidar, e se você tiver paciência, vai tirar de letra.

Ashanti: Hahahah, tenho sim, essa é uma das muitas das características que herdei da minha mãe, precisa de muito a mais um pouco pra me tirar do sério.

Débora: É isso, fechado então Asha, posso te chamar assim? Eu vou te passar tudo sobr-

Oliver: O Débora, vai ser hoje ainda? Tenho todo tempo do mundo não - Disse com a voz grossa, olhando impaciente e cheio de marra pra Débora, ignorando totalmente a minha presença.

Deus, que esse não seja o artista com que vou trabalhar, em nome do senhor...

Preciso de mimOnde histórias criam vida. Descubra agora