Prólogo

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"A mudança é uma merda necessária na vida de quem não quer morrer morando com os pais."

Os anjos gritaram amém. Os pássaros cantaram no ritmo do "aleluia, aleluia", e o meu sorriso evidente quase fez as minhas bochechas arderem de tão esticada que ficou a minha pele. Desci do carro bem devagarinho, como se quisesse saborear lentamente o gostinho doce da liberdade. Lembro-me até de ter fechado os olhos e inspirado profundamente. O vento era fresco e soprava com uma tranquilidade que invadia o meu peito. Haviam muitas árvores na rua, nada de gás carbônico em demasia, crianças brincavam de queimada mais adiante e uma casinha estilo Barbie bem bonitinha estava diante de mim. Parecida com a que eu implorei para que a minha mãe comprasse quando tinha sete anos. E ela não comprou, que isso fique claro.

Estava tudo mais do que perfeito. O bairro era perfeito, a rua era perfeita, a casa era perfeita, a vida era perfeita, o mundo era perfeito. E eu, Marília Dias Mendonça, finalmente estava livre de toda aquela gente doida que compunha a minha família. Nada contra, só que não dá para viver em um lugar onde não se sabe quando exatamente estão conversando ou discutindo.

Foram vinte e oito anos. Vinte e oito anos de muitos: ''Marília, vai lavar os pratos!''.''Marília, passa pano na casa!''.''Para onde pensa que vai a essa hora, Marília?''"Marília, já disse que não gosto dessa sua amiga.''''Marília, esse seu namorado é irritante.''''Marília, cuida da Isabella, ela é tão pequena!''''Marília, você não pode dormir tão tarde.''''Marília, sai deste computador!'' "Marília, sua aula é daqui a uma hora e você ainda está aí?''

Na boa! Naquele instante, esperava nunca mais ouvir o meu nome de novo. Eu ia morar sozinha! Claro, deixe-me repetir: sozinha! Mais uma vez: sozinha! Outra: SO-ZI-NHA! Okay, okay... acho que me empolguei. Só que muita coisa iria mudar.

Teria as minhas próprias regras, planos, horários e responsabilidades. Pagaria todas as contas, precisaria lavar meus pratos, fazer a minha comida e lavar a minha roupa. Mas, caramba! O preço da paz não pode ser quitado com um cartão de crédito. Tudo vale a pena quando é a liberdade e a privacidade que estão em jogo. Só de pensar que teria um banheiro só meu, a felicidade era tão grande que dava vontade de chorar. Nunca queira morar com pais malucos, uma avó com amnésia, uma irmã solteira com uma filha pequena e um irmão adolescente em plena ascensão da puberdade. Só dá confusão. A minha antiga casa devia ter um alerta do Ministério da Saúde bem na placa de boas-vindas. Tenho certeza de que, depois de vinte e oito anos de doideira, o meu cérebro não funcionava como o das pessoas normais.

A minha única esperança era aquela nova fase da minha vida, que estava começando com estilo. E, claro, com um emprego novo e bom. Uma casa nova e linda. Tranquilidade, calmaria... seria quase como se eu tivesse me mudado para a montanha dos monges, no Tibete. Já me sentia bem mais zen enquanto percorria o pequeno jardim da frente. Podia ouvir até o "aaaaummmmmmmm", ressoando ao longe, provavelmente alguém meditava diante do silêncio da rua. Ou era apenas o meu cérebro perturbado imaginando coisas.

Querendo ou não, este é o começo da minha história. Havia uma Marília radiante, sorrindo para os ares, ouvindo meditações alheias e pássaros em sinfonia. Foi comigo, mas podia ter sido com você. Imagine-se em um processo maravilhoso de mudança; aquela que você estava esperando há muitos anos. Imagine que nada no mundo poderia estar mais perfeito, procure em sua mente o dia mais lindo da sua vida. Era o que eu estava vivenciando naquele momento.

Afinal, tudo havia saído do jeito que quis: a casa estava à venda por um preço tão pequeno que nem acreditei. Quando fui visitá-la, realizei a compra na hora, sem ao menos pensar duas vezes. Tudo bem que era pequena. E tudo bem que era dupla. Certo, deixe-me explicar. A casa na realidade era enorme, só que dividida em duas. Mal dava para perceber por causa da reforma que o antigo dono havia feito. Como a planta era toda simétrica, e ele precisava de dinheiro. Teve a grande ideia de dividi-la em duas e alugar a outra parte. Funcionou. Bom, não deve ter funcionado tanto assim, visto que comprei a parcela que pertencia ao antigo dono. E minha vizinha acabou comprando de vez a outra.

A VIZINHA DO 119 | MALILAOnde histórias criam vida. Descubra agora