Capítulo 5: "Feitos de uma tempestade"

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_Jeremias esteve aqui!_ surpreendeu seu marido logo após ele sair do banho_ Olha só este bilhete!

Seria mentira de sua parte se dissesse que não ficara apreensivo com aquele aviso. Ele havia o lido com certa repugnância.

_Certamente nenhum dilúvio será capaz de destruir nossa casa_ nem para si aquelas palavras soaram verdadeiras_ Minha esposa deve abandonar o medo e se agarrar na fé!

_Estamos protegidos, não é?_ quis o lembrar desse episódio.

_Sim_ a abraçou.

Porque se mantinha aflito? O medo corrompeu suas crenças inesperadamente, mal conseguiu dormir naquela noite. Ao contrário de si, Cecília repousava tranquila ali em seus braços, certamente sonhava com um futuro feliz.

Sim! Pois de nada sabe o pessimista. Deveria focar apenas na certeza de estarem protegidos contra qualquer desventura. O medo leva consigo a força que motiva alguém a prosseguir. Quando reféns se fazem dele, é atirado fora o fiapo de fé. Mas não quis se ver livre dela, não podia. Afinal, há algum homem que não a possui?

Até mesmo para aceitar uma mentira é preciso de fé. Ainda mais quando se sobrevive à custa do desprogramado amanhã. O que aconteceria? Ele não sabia, nem mesmo se preocupava até então.

"... não fiquem preocupados com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã trará as suas próprias preocupações. Para cada dia bastam as suas próprias dificuldades."

XXX

Era óbvio que não viriam isso acelerou sua preocupação. A chuva logo cairia sendo o agente principal do desastre, além da desobediência deles.

Não tinham ouvidos? O seu bilhete fora claro ao dizer que corriam risco de vida ali. As necessidades básicas de um ser racional no seu intelecto é pensar, refletir e agir. O casal deveria estar indisposto para isso...

Esperaria algumas horas a mais. Afinal, o céu ainda se mostrava inofensivo. Jeremias poderia ter se precipitado, seria um alarme falso do noticiário?

Já era altas horas da noite. Teve que se submeter ao sono que dominou todo seu corpo cansado. Não havia chuva, não havia trovões, calmaria total... Apagou!

Havia gritos em seu sonho, daqueles desesperados...

Acordou com estrondos e clarões, feitos de uma chuva violenta. Sua mente se agitou, Cecília e Emanuel estariam bem? Provavelmente não... Seus cálculos indicavam que a casa estaria prostrada ao chão.

Seu coração disparou... Como não havia passado em sua mente sadia que o casal poderia não ter visto seu recado? Certamente nem tiveram chances de ver a última frase: "Caso queiram salvar suas vidas, venham até minha casa."

Aquilo o fez saltitar apressado até seu carro. Nunca é tarde demais para a esperança. Encontraria o casal ainda vivo, melhor ainda seria encontrar a casa sem nenhum estrago.

Estava desesperado, reagindo a seus estímulos sem raciocinar o que de fato fazia. A casa do casal não ficava longe dali, eram apenas alguns minutos, longos demais para sua ansiedade.

Pronto, havia chegado... Sim, estava no lugar certo! Mas era real aquela cena?

XXX

Não passavam de sortudos miseráveis. Olha só, o azar resolveu os presentear com um refresco amargo... Pobrezinhos!

_A chuva lá fora deveria ser pacífica_ Cecília estava em transe, deitada no meio da mata que lhe abrigaria naquela noite. Sua roupa se tingia das cores naturais do solo afofado pela água da chuva.

_Pronto! Improvisei um teto de lona para vocês ficarem!_ Gabriel se dispôs a ajudar o casal. Quatro caules serviram de apoio para aquele teto, formando um cômodo quadrado sem paredes. Ele pegou Cecília no colo e a pôs debaixo do teto de lona.

_Meu marido chora, como se estivesse disputando suas lágrimas com as gotas da chuva_ virou a cabeça e então viu Emanuel. Ela também chorava desesperada.

_Emanuel não consegue ouvir nada além do que sua própria consciência. Ela diz "você é o culpado" e ele assente com ar de derrota_ revelou Gabriel. Sabia que ambos estavam abalados além do normal, pareciam ter perdido a sanidade.

_Me carregou quando estive desacordada?_ ela tentou clarear os fatos. Ainda estava desorientada.

_Você desmaiou quando viu a casa desmoronando. Então a carreguei_ notava o quanto ela tremia por estar molhada, talvez devesse providenciar um cobertor.

_E meu marido, como reagiu?_ suas palavras saiam fracas, quase sem som.

_Um anjo o auxiliou. Ele também desmaiou_ olhou para o jovem que se mantinha afastado a alguns metros. Estava sentado sobre um tronco de árvore.

_Desmaiamos, tamanha foi a decepção!

Calou-se. Gabriel sabia que o casal havia entendido errado quando dissera que abençoaria suas moradas. Eles ainda não sabiam ler as entrelinhas...

A chuva estava mais mansa, mas Emanuel ali se molhando incomodava seu ser misericordioso. Foi até ele e o trouxe para junto de Cecília, sem precisar dizer uma só palavra.

Como estavam abatidos e frágeis em todos os aspectos. Aquilo lhe fez questionar Deus.

_ Oh meu Senhor, sei que sois bom e amável! Mas não pode omitir a dor de seus filhos amados. Por que planejou essa obra tão trágica?

_Gabriel, sabia desde o início o que deveria acontecer! Então porque me pergunta?_ sua voz ressoava nos ouvidos do anjo.

_Oh meu Senhor, olhe para seus filhos aqui prostrados no chão molhado. Abraçam-se um ao outro para não morrerem de frio. Eu nada sinto, em termos do estado da carne, mas sinto tamanha angústia e compaixão que sofro junto a eles.

_Gabriel, atendo o que pedes_ havia lido as entrelinhas.

_Meu Senhor, és digno de receber glória, honra e poder para todo sempre!_ regozijou-se. Estava mais do que certo que sua prece havia sido ouvida.

No mesmo instante, a chuva se despediu como reconhecimento do transtorno causado. Vagalumes rodearam a "barraca" em que se encontrava o casal, trazendo consigo aquela luz interior misteriosa. E como se não bastasse aquele ato sobrenatural, um vento uivou anunciando a chegada de centenas de penas brancas que contornaram, como um manto, o corpo de Emanuel e Cecília. Eles já dormiam sem notar aquele feito, devia ter Deus apagado suas memórias para que já não mais houvesse angústias em seus corações.

XXX

Presenciava aquele horrível cenário, onde os destroços de um começo de vida a dois se misturavam com terra molhada. Não sentia cheiro de sobreviventes, nem pudera.

Aquilo o chocou, era óbvio seu desapontamento com o destino cruel que perseguia o casal, e desta vez fora fatal.

Suas pernas bambas não suportaram seu próprio peso e desmancharam-se sobre o chão. Ali ele chorou. Que intimidade haveria de ter com eles para que sentisse tamanha dor?

Sua consciência rebelou contra si. Parecia lhe torturar pelo fato de não ser convincente quando pôde. Não havia sido persuasivo ao ponto de convencê-los a sair daquela casa deficiente.

E não sentia prazer naquela tentativa frustrada que outrora serviu de aviso para o jovem casal, exposto ao azar.

Quão covarde era, quão evasivo fora e quão abatido seria dali em diante...

_Estão mortos!_ bradou, Jeremias, aos prantos.

Na esperança de um caminho certoOnde histórias criam vida. Descubra agora