③⓪

2.2K 120 19
                                    

1/2

Amélia Lorenzi

Quando coloquei meus pés, finalmente, em solo africano eu respirei fundo. Agora não havia mais volta a dar. 

Quando saímos do avião as equipas médicas foram recebidas por seguranças armados e com máscaras nos rostos. Agora vendo isso eu finalmente tinha caído na realidade que eu tinha ido tentar ajudar a parar um surto de Ébola num país da África Subsariana. Que seja o que Deus quiser!

Tanto eu como todos os outros profissionais de saúde entramos em jipes que nos levariam até aos hiperfocus do surto, sentia um nervoso gigante dentro de mim mas acima de tudo me sentia bem. Era meu dever como enfermeira e profissional de saúde ajudar aqueles que mais precisam, ainda por cima pessoas necessitadas e em países que pouco podem fazer para ajudar na sua saúde. Se eu pudesse fazer parte pelo menos do 1% que ajudou a travar o surto eu já ficaria contente. 

(...)

Visto aqueles fatos de plástico que eram feitos para nos proteger do vírus e volto a sentir-me em 2020 quando a pandemia do covid tinha acabado de começar e tivemos que andar vestidos igual aos astronautas. Estes fatos pareciam ser ainda mais protetores e era uma complexidade enorme para os vestir. As equipas de médicos e enfermeiros foram determinadas e cada uma iria para cada parte da cidade.

Minha cabeça vai até às cartas e penso se elas já chegaram a todas as pessoas afinal já se tinham passado dois dias desde a minha chegada. Volto à realidade quando o jipe que nos transportava para ao lado de um espécie de hospital. 

Ao olhar para aquilo na minha cabeça ronda a seguinte pergunta: "Como é que é suposto uma pessoa ter qualidade de vida quando os hospitais aqui não têm condições nenhumas?".

Quando entramos dentro do local encontramos umas cinquenta pessoas deitadas em camas improvisadas, aquela cena encheu o meu coração de pena e tristeza. Por muito que eu as quisesse ajudar não haveria nada a fazer, visto que não há cura para a ébola, nem vacinas. Nos casos mais graves a única coisa que nos podemos fazer é fornecer cuidados paliativos e tentar fazer de tudo para que a pessoa se sinta confortável para partir. Porém, como sempre podem haver raridades em que pessoas sobrevivem. 

A nossa missão para além de tratar dos pacientes que estavam infetados, na esperança que eles se recuperassem era também prevenir que a doença se espalhasse ainda mais. As pessoas podem achar que eu simplesmente vim para aqui para arriscar a minha vida, mas eu vim fazer muito mais que isso, eu vim tentar ser o anjo da guarda dessas pessoas que mesmo não me conhecendo ou até sabendo falar a mesma língua que eu, confiam em mim para que eu as deixe confortáveis o suficiente para encontrarem a luz.

(...)

Havia se passado uma semana e eu posso dizer que era horrível ver tanto sofrimento e não conseguir ajudar ninguém por não haver nada a fazer. Mas para mim o pior de tudo era quando as pessoas começavam a ter hemorragias, os seus gritos agonizantes ficavam presos na minha cabeça durante a noite. 

Para além disso outra coisa que me deixava acordada durante a noite era ele, pensava se ele já tinha recebido a minha carta, se já tinha lido e se tinha compreendido o meu lado. Por não haver internet aqui e para maior eficácia do nosso trabalho, nós deixamos nos celulares numa caixa na organização que nos tinha trazido para cá. Ou seja a gente estava inconectável, eu tinha referido isso nas cartas por isso acho que ninguém tentaria me ligar.

A próxima vez que eu tocarei num celular vai ser daqui a seis meses, poderia ser o fim do mundo pois eu amo mexer no celular mas tenho certeza que irei andar tão ocupada que nem me vou lembrar dele. 

(...)

Tinham passado duas semanas desde a chegada e finalmente um sorriso brotava no nosso rosto, depois de tantas perdas finalmente havia dois sobreviventes à doença. Estávamos felizes mas tristes também pois alguns membros de outras equipas que tinham viajado connosco tinham contraído o vírus e infelizmente partido deste mundo. 

Era triste e com toda a certeza esta terra cheirava a morte mas casos como o de hoje, de sobrevivência, deixavam os nossos dias um pouco melhores. O pior é que a gente não sabe se possuí o vírus ou não, pois este só começa a dar sinais de 2 a 21 dias depois da infeção. Mas a gente tem sempre que pensar no melhor né.

Temos que deixar tudo nas mãos de Deus e também nas do destino. 

(...)

Infelizmente um dos nossos colegas de equipa tinha falecido, apesar de não nos conhecermos bem estamos a compartilhar as mesmas vivências. E apesar de tudo custa sempre ver as pessoas a partir ainda mais se for de uma forma horrível dessas. Confesso que tenho medo que aquilo aconteça comigo também. 

(...)

Era dia de receber as cartas dos familiares, este dia apenas acontecia uma vez por mês. Sabia que não iria receber nenhuma pelo simples facto de que eu iria ficar muito presas nelas e minha vontade de voltar para casa aumentaria. Assim como eu muitos outros decidiram não receber cartas, enquanto os outros liam e choravam por o que lhes era escrito nós conversávamos sobre as nossas vivências. 

Amanhã chegariam mais algumas equipas de enfermeiros e médicos, isto porque houveram muitas baixas das equipas que já cá estavam. 

Vou até meu quarto que compartilhava com mais 5 mulheres e quando deito minha cabeça na almofada meus pensamentos vão parar à minha família, aos meus amigos e finalmente a ele. Me lembro das nossa última conversa, ele dizendo que finalmente tinha encontrado o amor verdadeiro e que ele não iria desitir de mim. 

Um sorriso de saudade se forma no meu rosto, quando me lembro do nosso último abraço e da quantidade de "eu te amo" que ele disse. Se eu soubesse que aquela seria realmente a nossa despedida, eu teria dito uma última vez que o amava.Não sabia se Charles tinha ganho a corrida, mas do fundo do meu coração eu esperava que sim. Eu sempre queria o melhor para ele.

Com ele sempre preso nos meus pensamentos, eu adormeço e peço para que o dia de amanhã seja melhor do que o de hoje. 







𝐓𝐡𝐞 𝐎𝐭𝐡𝐞𝐫 𝐖𝐨𝐦𝐚𝐧 ➤ 𝗖𝗵𝗮𝗿𝗹𝗲𝘀 𝗟𝗲𝗰𝗹𝗲𝗿𝗰Onde histórias criam vida. Descubra agora