Rosas vermelhas

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Rosas vermelhas: A Rosa vermelha significa o ápice da paixão, o sangue e a carne. Para os romanos as rosas eram uma criação da Flora (deusa da primavera e das flores). Quando uma das ninfas da deusa morreu, Flora a transformou em flor e pediu ajuda para os outros deuses. Apolo deu a vida, Bacus o néctar, Pomona o fruto, as abelhas se atraíram pela flor e quando Cupido atirou suas flechas para espantá-las, se transformaram em espinhos e, assim, segundo o mito diz ter sido criada a Rosa.

20 de novembro de 2021, Lathi - Finlândia
Isku Areena

Era sábado, dia de jogo.
Uma das novidades sobre o hockey era o intenso calendário de jogos que os times tinham. No futebol, mais de dois jogos na mesma semana era algo quase impensável, os jogadores estariam muito cansados e o risco de lesão aumentaria muito. Enquanto no hockey, principalmente por causa dos atrasos no calendário devido a pandemia, aquela exceção parecia ter se tornado regra. Aquela era uma das centenas de coisas que Ava jamais conseguiria aceitar ou entender sobre o esporte.
O calendário da semana que havia se passado e da próxima era intenso, com muitos jogos fora de casa, mas naquela noite de sábado, os Pelicans jogariam na Isku Arena.
Depois do susto com a lesão de Mäkelä e as indagações de Jakkos quanto ao último jogo, Ava resolveu tentar se fazer presente na partida, mesmo que apenas corporalmente. Precisava convencer o time de que realmente se interessava pelo esporte, e o jeito meio mais seguro de fazê-lo era frequentando os jogos. Parte por temer ter sua farsa desmascarada, parte por querer ocupar a cabeça o máximo que pudesse. Sua mente não conseguia descansar, maquinando infinitamente sobre o encontro com o capitão lesionado. As diferentes posturas do central com a terapeuta a deixavam ainda mais curiosa, se sentia um detetive tentando resolver o enigma psicológico de um criminoso. Nada na postura de Mäkelä fazia sentido, e isso a transportava para um eterno ciclo onde seu único pensamento durante o dia era o capitão, mesmo que fosse na intenção de desvendá-lo.
Não havia contado sobre o atendimento para os amigos, sabia o que Maisie diria e não queria que a amiga criasse teorias sobre Ava estar interessada no jogador. Também não havia contado porque ainda se esforçava para não falar sobre o assunto, na tentativa de que isso a ajudasse a não pensar sobre.
Como sempre, sua fuga favorita era seu trabalho e agora, mais que nunca, havia muito a se fazer. Por isso se devia a decisão de assistir ao jogo da Isku Arena, queria sentir a energia dos torcedores, tentar se apaixonar pelo esporte, se motivar. E parecia estar funcionando, estavam com a casa lotada, torcedores de azul e preto por toda parte, entoando hinos e ensaiando gritos da torcida. Uma avalanche de fãs dos pelicanos, sorrindo e comemorando a partida em casa e a boa fase da equipe. O mascote, um pelicano gigante e musculoso, agitava os torcedores que já estavam acomodados em seus lugares.
Depois de ir ao vestiário para um rápido cumprimento ao grupo, Bekker se afastou em busca de seu lugar, unindo-se a finlandeses felizes num sábado à noite de hockey. Era tocante a energia dos corredores por onde os jogadores passariam antes de entrar no gelo. Sentindo aquelas coisas poderia até se apaixonar por aquele esporte que há alguns meses a deixava de cabelo em pé, pensou.

– Ava Bekker. – Alguém a cumprimentou, surgindo no corredor ao seu lado de repente, fazendo-a sobressaltar.
– Bradley Mäkelä. – A inglesa se assustou tocando o peito e o jogador riu abafado, baixando a cabeça.

Mäkelä usava jeans, tênis branco, um moletom escuro e uma touca preta que do modo que se dobrava sobre a testa dele, revelava o brinco prateado de argola pequena na orelha e parte do cabelo que lhe cobria a nuca, com as pontas desordenadas e levemente enroladas. Ava correu os olhos pelo homem rapidamente e de modo disfarçado, percebeu certa semelhança em suas roupas. Bekker também usava jeans, tênis branco e um moletom, a diferença era que seu moletom exibia a estampa do pelicano de Lathi. A cor de sua touca era diferente, era cinza, mas também revelava os pequenos brincos que a terapeuta usava, e seu cabelo estava solto, caindo sobre seus ombros. Ava lembrou de sua mãe e tentou imaginar o que ela diria, talvez seria uma boa ideia prestar mais atenção a suas roupas na próxima vez.

– Para onde está indo? – Quis saber Bradley, despertando Ava de seus pensamentos.
– Assistir ao jogo. – Ela respondeu como se fosse óbvio e também por ainda sentir certa incerteza sobre como se portar na presença do central.
– No meio da multidão? – Brad franziu o cenho e parou de andar.
– E tem modo melhor de fazer isso? Sentindo a torcida, a energia, vibrando junto. – Disse a terapeuta e o jogador sorriu. – E no meio da multidão é muito forte, eu vou, no máximo, ficar perto. Não gosto muito de multidões.
– Perto. – Brad assentiu sorrindo sarcástico. – Entendi.
– Pode ir comigo se quiser, ou pode assistir da área VIP. Inalcançável. – Bekker o provocou sorrindo e voltou a andar. – Imagino que não esteja acostumado a assistir ao jogo de pé, ou de algum outro modo desconfortável. Isso é só para os torcedores de verdade. – Provocou, lembrando-se de todas situações catastróficas que havia passado para assistir uma partida de futebol.
– Quem disse a você que eu sou o cara da área VIP? – Brad a acompanhou dando de ombros, caminhando a seu lado. – E só para constar, prefiro meu lugar de sempre, no gelo.
– Bom, cada um com seus problemas, não é? – Ava fingiu não se importar e tentou conter o riso frouxo e irônico que insistia em ficar preso em seus lábios, enquanto apontava com o olhar para o punho imobilizado de Bradley.

Mäkelä sorriu de volta e sacudiu a cabeça negativamente. Os dois seguiram até alguns lugares que costumavam ser separados para as famílias, perto do banco de reservas, mais próximos ao rinque, lugares que estavam vazios. No caminho, Brad fora cumprimentado algumas vezes e fotografado outras tantas, mas depois de algum tempo estavam enfim sentados em seus lugares, esperando que o jogo começasse.
Era absolutamente estranho para ambos estarem sentados um ao lado do outro, principalmente depois de tantas idas e vindas que atravessam juntos, mas separados. Depois de toda incerteza e insegurança por parte de Bradley, e toda raiva e frustração do lado da terapeuta inglesa. Era impensável para os dois que em menos de uma semana teriam duas experiências como aquelas, juntos, conversando, sem se ofenderem ou sem estarem armados, prontos para se atacar ou se defender. Era diferente também o modo como se sentiam, ansiosos e nervosos, sem conseguir tirar dos lábios o riso frouxo toda vez que se olhavam, mesmo que se soslaio e se percebiam sentados, juntos, prestes a assistir uma partida de hockey.

– Tem muitas partidas de hockey de onde você veio? – Brad puxou assunto, mesmo incerto se devisa fazê-lo.
– E eu sei lá. – Ava respondeu sem pensar, estava empolgada com a movimentação da torcida, esquecera por alguns instantes seu disfarce. – Quer dizer, não onde eu morava. Sabe como é, tinha que assistir pela TV. – A terapeuta tentou disfarçar e Brad assentiu sem parecer desconfiar.

A Bradley Mäkelä não era comum assistir uma partida da arquibancada, seu lugar era no gelo, com seus irmãos, marcando pontos, com o taco nas mãos. Sentia-se estranho apenas assistindo, sempre era assim, em todas as ocasiões em que precisava se ausentar sentia-se como se estivesse fora do lugar. O punho imobilizado completava a sensação desconfortável, no caminho até os lugares do lado de fora do gelo, fora perguntado diversas vezes sobre seu pulso, sobre quando voltaria aos jogos e, Deus sabia o quanto ele queria ter alguma resposta para dar, mas não era tão simples.
Torcia apenas para que não fosse tão grave, que se sentisse bem logo e que pudesse voltar a ocupar seu posto no time, sem mais prejuízos para os Pelicans. A situação era complicada, todos estavam no limite e a cobrança por bons resultados era um fardo pesado a se carregar, precisava estar preparado para ajudar a equipe no que fosse preciso. Enquanto isso, tentava não pensar nas muitas possibilidades ruins e não incomodar a equipe médica a cada dez minutos com perguntas sobre sua recuperação.
Mas de algum jeito misterioso e maluco, a lesão tinha um lado bom. Seu plano de ignorar a nova terapeuta inglesa do time, a fim de capturar sua curiosidade e atenção, havia falhado de milhões de maneiras diferentes, e por fim, entendera que não podia ignorar quem o ajudaria em sua recuperação. Além disso, estava tão ansioso por informações e emocionado em seu último encontro que simplesmente não pôde manter a postura de sempre e se fingir desinteressado, ou não ficar abobado na presença de Bekker. A ocasião da pizza e bombons havia feito com que metade das barreiras de Bradley se descontruíssem, e ver de perto a postura e personalidade de Ava, suas piadas e sarcasmos haviam derrubado o resto de seus muros. Ava era ainda mais interessante de perto, era engraçada, irônica, não tinha medo de dizer o que pensava e não parecia ser do tipo que abaixa a cabeça para alguém.
E ao ver a terapeuta presente para o jogo daquela noite, o capitão decidira de uma vez por todas desistir daquele jogo idiota, por mais interessante que fosse perceber as expressões irritada da inglesa em resposta ao seu desdém. Queria falar com Ava, conversar sobre o jogo, sobre seu punho, fazer piadas sobre estarem com praticamente as mesmas roupas. Sabia que precisava se conter para não parecer um menino emocionado, mas não podia ficar completamente indisponível, nem queria.
Agora os dois estavam juntos, sentados lado a lado, prestes a assistir uma partida de hockey, ainda era estranho, mas por outro lado, interessante. Bekker parecia animada e era provocante tê-la sentada ali, precisava se vigiar o tempo todo para não começar a falar como um adolescente ou a agir como um idiota por apenas estar perto dela.
Enquanto a terapeuta se distraía tirando fotos da arena e publicando em seu Instagram, Brad direcionou sua concentração para o gelo pela primeira vez desde que haviam se sentado ali. O time se aquecia e vez ou outra, quando algum o notava, acenava para ele. Atte e Aleks treinavam alguns tiros juntos em um canto e quando se movimentaram, perceberam o amigo sentado do lado de fora do rinque. Atte e Aleks se cutucaram, Aleks tinha um sorriso incrédulo no rosto, enquanto Atte estava com a boca aberta e olhos arregalados. Quando se aproximaram de Brad e Ava, o capitão dos Pelicans arqueou uma sobrancelha sugestivamente e indicou a terapeuta distraída para os outros dois, depois mandou um beijo no ar para eles, fazendo-os rir.

– Era o Atte Tolvanen ali? – Bekker quis saber, esticando-se para enxergar melhor o banco de reservas, mas os jogadores já haviam voltado para o vestiário.
– O que? Não. Não era não. – Brad desconversou e Ava estreitou os olhos, confusa, depois deu de ombros.
– Será que ainda vai demorar? Queria comprar um refrigerante. – A terapeuta comentou, olhando para o horário no telão no centro da arena.
– Refrigerante?
– É, é que eu não bebo não. – Ava piscou.

Brad apertou os lábios num quase sorriso e assentiu uma vez, direcionando o olhar para outro ponto qualquer da arena. Bekker o observou por alguns instantes, era inesperado estarem lado a lado assistindo um jogo, principalmente quando até dias atrás, o jogador ainda fizesse questão de ignorar sua presença. Talvez fosse algo na água do lugar, ou a pancada em sua cabeça forte demais. Mas independente da razão, era bom ter uma companhia, talvez Ava pudesse imitar suas reações e falas, assim teria algo a dizer sobre o jogo caso perguntassem. Imitaria Bradley Mäkelä, seria sua sombra, prestaria atenção em suas reações, trejeitos, falas e tudo que fosse sobre o jogo, seria no dia seguinte a mais perfeita torcedora do Pelicans que já existiu.
Os times voltaram ao gelo e rapidamente tudo estava organizado, após os rituais de entrada e de hinos a partida teve seu início. Era fácil entender, cinco de cada lado, disputando o disco com seus tacos, dando encontrões e jogando o jogador oponente no chão ou contra a proteção sem que os árbitros dissessem qualquer coisa. Ava mantinha os olhos atentos em Brad, desviando apenas quando o jogador percebia e a encarava, confuso. Mäkelä vibrava com as chances de pontuação, murmurava quando o goleiro oponente fazia um bom trabalho, apertava os lábios, agitava as mãos, assoviava e gritava vez ou outra, acompanhando o resto da torcida. Mas era contido, nada muito barulhento, os movimentos e sons que o jogador fazia eram mínimos, se a inglesa não estivesse atenta a ele, mal perceberia suas expressões.
Quando jogadores começaram a pular do banco de reserva para o rinque, a inglesa se concentrou em Bradley, olhando do gelo para o jogador, captando toda e por menor que fosse expressão de seu rosto.

– Por que é que está me olhando assim? – Mäkelä indagou de repente sem olhá-la, pegando Ava de surpresa.
– Eu não tô te olhando não. – Mentiu, olhando para frente e torcendo os lábios enquanto estreitava o olhar, balançando a cabeça negativamente.
– Não era você que me olhava a cada dois segundos desde que o jogo começou? – Brad arqueou uma sobrancelha, encarando-a como uma mãe que espera que o filho assuma a janela quebrada. – Estranho, eu poderia jurar. – Ironizou.
– Não sei não, Bradley. – Ava ergueu as sobrancelhas, fingindo o máximo que podia. – Acho que está meio paranoico.

Brad sacudiu a cabeça negativamente e riu baixo, incrédulo, voltando a se concentrar no jogo, Ava o imitou.
Logo, um tiro que o goleiro rival interceptara e a partida recomeçou com um face-off, Brad percebeu a inglesa dividindo sua atenção entre ele e o que acontecia na partida, mas queria flagrá-la, por isso esperou com paciência. Mais uma vez, minutos depois, quando o time marcou pontos pela primeira vez, Mäkelä aguardou paciente até que Ava fizesse o mesmo que na vez anterior, e quando fez, a surpreendeu, fazendo Bekker se assustar.
– Não estava olhando, é? – Brad acusou.
– E-eu não...– Bekker expirou derrotada e abriu a boca algumas vezes, tentando dizer algo, mas falhou e baixou os ombros. – Tá legal, você venceu, eu estava. Feliz? Agora não enche. – A inglesa jogou os cabelos na direção do capitão, torcendo os lábios em um bico e olhando para o gelo.
– Feliz não é a palavra que eu escolheria. – Brad implicou. – Por que estava me olhando? Está me espionando para o Petri? – Ele questionou, usando a primeira coisa que lhe viera a mente.
– Hein? Por que eu faria isso? – Bekker inclinou a cabeça sobre o ombro, confusa. – Espera, alguém espiona para o Petri?
– Por que estava vigiando minhas reações, então? – Mäkelä indagou outra vez.
– Não estava nada. – A terapeuta desviou o olhar rapidamente, olhando do jogador para qualquer outro canto da arena.
– Estava sim.
– Claro que não. Não, não estava. – Tentou se defender, mas Bradley já a encarava como se soubesse de tudo. – Sei lá, achei você bonito. – Mentiu, desviando mais uma vez o olhar e deu de ombros, voltando a encarar o jogo.

Bradley abriu a boca, mas não disse nada, permaneceu imóvel, com os olhos vagando por qualquer lugar, atônito.
– É o que que é?
– Cara, você é bem chato, sabia? – Ava tentou fugir do assunto, queria que ele se calasse, mas o tiro parecia ter saído pelo lugar errado.
– E você é bem estranha, Ava Bekker. – Brad riu sem humor, ainda espantado e a terapeuta o encarou, surpresa. – Bem estranha.

Os dois ficaram em silêncio por alguns instantes, depois de enfim romperem o contato visual, se voltaram para a partida, mas continuavam se vigiando vez ou outra pelo canto dos olhos.
– Mas que...– Brad xingou baixo quando a partida foi paralisada, rompendo o ciclo de vigília dos dois.
– O que? O que foi? – Bekker, instintivamente, quis saber, olhando do gelo para o homem ao seu lado.
– Não viu o que aquele cara fez com o taco? – Brad apontou para o gelo, balançando a cabeça negativamente, reprovando o acontecido.
– E-eu vi. Quer dizer, não, alguém entrou na minha frente bem na hora. – Bekker tentou se explicar.
– Ava Bekker. – Bradley tocou um dos ombros da terapeuta depois de a encarar de olhos estreitos e apontou para o gelo. – Não existe, literalmente, ninguém entre você e o gelo.
– Um jogador. – Ela mentiu, erguendo um ombro e desviando o olhar.
– Você mente muito mal, Ava Bekker. – Brad a analisou desconfiado.

Ava fingiu que Brad não estava ao seu lado e fixou o olhar ao gelo, sentia sua personalidade criada para o novo trabalho se esfacelar e quebrar em milhões de pedaços. Bradley aparentemente era esperto, o que a surpreendia de certa forma. Mas fato era que o jogador já havia percebido algo estranho na inglesa, e agora, Ava precisaria se esforçar muito para manter qualquer dúvida longe. Esporte idiota, xingou em pensamento.
Brad, por sua vez, tentava pensar em possíveis razões para todas as reações estranhas da terapeuta. Ava Bekker era transparente, era fácil perceber quando estava mentindo se olhasse do jeito certo. Gostava de pensar que a razão para ela o estar encarando fosse realmente tê-lo achado bonito, mas alguém como a terapeuta não admitira aquilo tão fácil se fosse mesmo verdade.
A atenção dos dois voltou a ser capturada pela partida quando uma briga teve início. A expressão de Ava não era das melhores, e ao notar, uma luz se acendeu sobre Bradley Mäkelä. Era muito incerto, mas valia a tentativa.

– Conseguiu ver quem começou a briga? – Ele perguntou e Ava apenas negou com a cabeça, como uma criança confusa. – Espero que seja um dos nossos. – Disse o capitão e Ava o encarou como se o capitão a tivesse xingado a mãe.
– O que disse?
– É, sabe, se for um dos nosso e ele conseguir tirar alguém por isso, é melhor, não acha? – Mentiu ele, analisando a reação da terapeuta. – Aí teríamos um power play e uma chance de shoot out.
– Ah...é. – Ava assentiu, tentando controlar a expressão chocada, mesmo que não fizesse ideia sobre o que é que Bradley falava. – Com certeza.

Bradley abriu a boca, pasmo e piscou algumas vezes com olhar atônito preso a terapeuta, que sentiu-se empalidecer devido a reação dele.

– Em que açougue você aprendeu sobre hockey? – Ele a indagou chocado.

Ava não respondeu, apenas se manteve imóvel encarando a feição chocada do jogador, que ora piscava, ora estreitava o olhar.

– Como é que você... – Mäkelä começou a falar de novo, mas subitamente percebeu. E então sua boca aberta transformou-se em um sorriso mudo, congelado, combinando com os olhos que analisavam a pálida terapeuta. – Você não sabe. Não sabe sobre hockey. Não sabe, não é?

Ava sentiu o ar lhe faltar e o rosto congelar, depois, quando conseguiu, desviou o olhar, ergueu as sobrancelhas e suspirou, voltando a encarar o jogador que permanecia imóvel, com a mesma expressão de quem descobre a fórmula da Coca-Cola.

– Você não sabe. – Ele repetia para si mesmo.
– Já terminou? – Bekker indagou, adotando um estado mais reativo, buscando fugir de qualquer bronca que Bradley a desse, ou olhares de decepção.
– Você enganou todo mundo direitinho. – Brad riu nasalado, apontando para a inglesa que se mantinha séria, com expressão fechada.
– Feliz agora? Pode correr e contar para todo mundo. – Bekker bufou, cruzou os braços sobre o peito e torceu os lábios em um bico.

Mäkelä estava chocado por aquela revelação, e conseguia sentir-se, de algum modo, vitorioso por ter descoberto aquele segredo. Não entendia porque Ava havia escondido algo tão simples, não era como se a vida de alguém dependesse disso. Talvez pegasse mal inicialmente, mas nada que não pudesse ser resolvido.
Brad a encarava, ainda pasmo e sorridente, enquanto Ava mantinha-se fechada, com expressão de poucos amigos e encarando os próprios pés. O jogador respirou fundo, compadecendo-se da postura da inglesa, que parecia realmente envergonhada, e suspirou. Ainda a observando, Bradley apoiou os cotovelos nos joelhos e inclinou o tronco para frente, em silêncio, enquanto tentava pensar no que fazer.

– Se ninguém sabe, não vão ficar sabendo por mim. – Disse ele depois de algum tempo, atraindo a atenção da terapeuta.

Ava, devagar, girou o corpo na direção do jogador, buscando seu olhar e Brad fez o mesmo. Depois de alguns instantes, ele apertou os lábios e torceu um canto, num quase sorriso sutil.

– Obrigada. – Bekker sussurrou.
– Posso perguntar o porquê de ter mentido? – Bradley ainda a fitava com curiosidade.
– Acho que nem eu sei a razão. – Ava expirou chateada, baixando os ombros. – Só não quis admitir que precisava de ajuda, eu acho. – Confessou ela, torcendo para baixo o canto dos lábios. – Ou que achassem que sou uma estrangeria que não sabe nada de hockey, e também por ser mulher. E todas essas coisas juntas.
– Ah, claro. – Brad assentiu, e em seguida encarou o chão e riu abafado, sendo empurrado levemente pelo ombro por Bekker.
– Como percebeu?
– Não é como se você soubesse disfarçar mito bem. – O capitão implicou, endireitando a coluna. – E você faz essa coisa com os olhos quando mente. – Explicou, apontando para os próprios olhos com dois dedos.
– O que? Que coisa?
– Essa coisa. – Bradley tentou imitar os desvios de olhar característicos de quando Ava mentia. – Sabe? Essa coisa com os olhos.
– Eu não faço isso. – Ela negou com uma gargalhada. – Você está completamente vesgo agora. Eu não faço isso.
– Faz, claro que faz. – Ele insistiu, também sorrindo.
– Espera, não. Não faço isso. – Ava uniu as sobrancelhas, mantendo o riso frouxo. – Eu faço? Eu fico com os olhos assim? Que coisa horrível. – Bekker tocou o próprio rosto, encenando uma careta envergonhada, fazendo Bradley também rir alto. – Brad Mäkelä...– Bekker suspirou, tentando recuperar-se depois das risadas, mas ainda com os olhos sobre Brad. – Eu nunca sei o que esperar de você.

Brad expirou um riso presunçoso e se recostou ao seu assento, esticando um braço sobre o encosto da cadeira da terapeuta e apoiando o tornozelo direito sobre o joelho esquerdo.

– O que foi? – Bekker sorrindo, o empurrou pelos ombros mais uma vez, acompanhando o movimento dele.
– Vai me dizer que sempre diz isso para todos, de novo? – Ele a encarou com uma sobrancelha desafiadoramente arqueada.
– Você é muito presunçoso.
– É, eu tento. – Brad deu de ombros.

Bekker ainda o encarava sorrindo, pasma com a facilidade e simplicidade nas conversas com Mäkelä, como se fosse natural. Era estranho que o único cara do time que a ignorava, aparentemente por puro capricho, parecia ser um dos que de forma mais simples tinha mais conexão. Era fácil estar ao lado dele e de algum modo maluco, seguro.
Brad estava feliz, era uma das poucas situações onde estava verdadeiramente feliz, mesmo estando fora do gelo em um dia de jogo. Não conseguiria dizer em que momento ou depois de qual palavra aquele tipo de sensação boa havia começado, mas ela estava ali, presente. Estava sorrindo sem parar ao lado de Ava Bekker e nem mesmo entendia porque. Era inteligente e espontânea, divertida e linda, era do time, mas isso não justificava. Bekker tinha algo a mais, algo a mais que capturava Brad estranhamente. Como quando você é criança e está na praia e encontra uma concha bonita, não há forma de saber quantas pessoas já passaram por aquela concha, mas para você ela é especial. Algo na forma com que a luz do sol reflete em suas cores, ou o formato, ou a rigidez. Aquela concha que estava ali, entre as outras, num dia comum de sol, se torna a sua concha especial. E quando percebe, você cresceu, mas ainda mantem a concha junto a si, e sempre que a encontra é invadido por sensações boas e um saudosismo gostoso.
Não, não seja tão emocionado, Brad pediu a si mesmo, em pensamento, mas seus olhos ainda estavam em Ava Bekker, com seu cabelo volumoso e brilhoso e seus olhos brilhantes. Será que Ava Bekker era sua concha especial? Mäkelä se perguntou, mas em seguida, balançou a cabeça incrédulo consigo mesmo, no instante em que o som alto demais para não ser prejudicial a audição avisava o fim do primeiro período.

– O que aconteceu? – Bekker perguntou, sentindo-se leve por enfim poder perguntar a alguém e tirar suas muitas dúvidas sem peso na consciência.
– Fim do primeiro período. – Ele respondeu com simplicidade.

O jogador a observou em silêncio por dois segundos, pensando na situação estranha que Bekker havia se colocado ao fingir ser fã de hockey. E pensando nisso, uma ideia o ocorreu e ele sorriu.

– O que foi? – A inglesa perguntou curiosa, olhando-o por cima dos ombros.
– Vem, vou te ajudar. – Disse ele.

Brad se ajeitou em seu assento, aproximando-se mais da terapeuta e indicando com o olhar para que Bekker fizesse o mesmo. O homem apoiou os cotovelos nos joelhos e inclinou o corpo para frente, Ava o imitou.

– Me diz o que sabe. – Pediu ele, a olhando com doçura.
– São cinco jogadores. E vocês brigam, não existe regras de substituições e é isso. – Confessou sorrindo amarelo, diante o olhar chocado do jogador. – O que foi? Eu sou a garota do futebol e da Fórmula Um, essas regras de vocês são muito confusas. – Tentou se justificar.
– Okay, é oficial. – Brad expirou pesadamente. – Você me assusta.
– Mas eu posso ser ótima aluna. – Bekker garantiu, tocando o joelho do outro, atraindo sua atenção. Não podia perder aquela chance. – Por favor.
– Certo, vamos tentar fazer um milagre. – Mäkelä limpou a garganta, disfarçando o pequeno susto ao ser tocado por ela. A terapeuta não precisava pedir por favor, abriria um curso inteiro sobre hockey apenas para Ava Bekker se ela pedisse. – Certo...você gosta de futebol, talvez consiga entender por associação. – Ele começou a explicar, olhando para frente, para caso de estar vergonhosamente vermelho e Ava assentiu. – O objetivo é claro, não precisa que te explique. Precisa?
– Não, isso eu sei. Fazer o disco passar pelo goleiro. – Bekker respondeu, feliz por saber pouco mais que zero.
– Já é alguma coisa. – Bradley maneou a cabeça. – São cinco na linha, dois de defesa e três de ataque. Ala direita e esquerda e o central.
– Não tem mesmo limite de substituição? – Ava quis confirmar.
– Não, mas tem limite de tempo no gelo, então meio que você precisa sair em alguns momentos. Se o time está perdendo e precisam de mais jogadores para um ataque, você entra. Sabe, é sem complicação, se precisa fortalecer a defesa, ou atacar com mais força... – Mäkelä deu de ombros.
– Mas, se é assim, quem controla? Sabe, para que não haja um time com mais jogadores que outro. – Ela tornou a perguntar, mas Brad apenas desviou o olhar rapidamente e ergueu as sobrancelhas, franziu o nariz e depois voltar a olhá-la sugestivamente. – Ah, entendi. Beleza. Que beleza.
– Geralmente as equipes respeitam. – Bradley tentou justificar, sorrindo de canto com a expressão graciosa dela.
– E vocês podem mesmo brigar?
– Não. – Ele riu abafado. – Não, MMA é outro esporte, está confundindo. – Brincou e Ava o empurrou pelo ombro, fazendo careta e os dois riram. – Você pode usar os ombros, troncos e quadril para atacar e roubar o disco, mas é só isso. Se tirar sangue de alguém, é punido, se brigar é punido, se usar o taco contra algo que não seja o disco, é punido.
– Você me pegou direitinho quando disse aquilo da briga, não é? – Ava estreitou o olhar, enfim entendendo a jogada de Bradley e ele sorriu vitorioso mais uma vez. – O que aconteceria se você estivesse errado sobre mim?
– Bom, aí eu teria que me desculpar e teria mais uma razão para falar com você. – Brad respondeu rápido, olhando profundamente nos olhos da terapeuta e arqueando uma sobrancelha. Ava sentiu o rosto esquentar e virou-se para frente.
– Eita. – A inglesa murmurou, instintivamente e Brad sorriu.

Os dois ficaram em completo silêncio até que os jogadores retornassem ao gelo para o segundo período.

– Está vendo como eles ficam antes de começar? – Mäkelä apontou para os jogadores organizados na linha central, aguardando o início da partida, frente a frente, e Bekker assentiu. – Quando o jogo precisa ser reiniciado, é com o face-off, toda vez que o jogo é parado, recomeça com um face-off. O árbitro vai jogar o disco e a partida começa. – Ele explicava e enquanto o ouvia, Ava assistia os movimentos em tempo real.

– O que? O que foi isso? Por que parou? – Bekker buscou o olhar de Brad quando o jogo foi paralisado depois de alguns minutos e ele sorriu.
– Se chama offside, que é quando um jogador recebe de dentro da zona ofensiva o passe de um jogador que estava dentro da zona defensiva ou da zona neutra. Você só pode entrar no campo adversário se o disco entrar primeiro. Se não for assim, fica fácil. – Ele piscou. – Tenta associar com o impedimento do futebol.
– Por que eles estão fazendo aquilo? – A inglesa apontou para a movimentação dos jogadores para um dos pontos de face-off fora da zona de ataque.
– Aqueles pontos vermelhos no gelo são as zonas de face-off. – Mäkelä explicou com paciência. – Dependendo de qual seja a razão para a interrupção do jogo, a partida recomeça em uma dessas áreas. – Enquanto explicava, Brad tirou o celular do bolso e buscou por uma imagem do rinque, mostrando-a para Ava. – Os pontos vermelhos são as áreas de face-off. A linha vermelha marca o centro do gelo, os dois espaços divididos pelas linhas azuis, perto da linha central são as zonas neutras. E as zonas defensivas e ofensivas são essas na frente dos gols, é intuitivo e não é muito diferente do futebol. Pense na zona neutra como o meio de campo, e o resto fica fácil. – Explicou o capitão e Bekker assentiu, atenta.
– Como no futebol.
– Isso, como no futebol. – Brad sorriu, dedicando algum tempo para observá-la. – Bom. – Mäkelä tossiu, limpando a garganta, tentando retomar sua postura. – Há também o icing, que é quando um jogador dispara o disco para longe, atrás da metade de seu campo, sem ser necessariamente um passe. Se o disco cruzar a linha vermelha final do outro lado, é um icing. Mas se o for feito na direção do gol e se o disco entrar, é ponto. Outra exceção é que uma equipe que está sofrendo o power play não está apta a receber a punição do icing e pode isolar o disco sem problemas. – Bradley ainda a olhava, enquanto Ava mantinha uma expressão um pouco confusa em seu semblante. – Pense nisso como um escanteio, ou algo assim. Existem algumas variações, mas é melhor deixar para outra aula. – Ele sorriu.
– Faz sentido. – Ava sorriu, tocada pela paciência de Bradley. – O que é o shoot out que mencionou naquela hora?
– Se o jogo ficar empatado, tem outro tempo, como se fosse a prorrogação. Chamamos de overtime, se ninguém marcar no overtime, vamos para o shoot out, que é como se fossem pênaltis. Quem marcar mais, vence. – Mäkelä explicou. – Mas não é como no futebol, isso acontece em quase todos os jogos. Nos playoffs não temos os shoot out.
– Por que não? Não seria mais óbvio? – Bekker inclinou a cabeça sobre o ombro.
– São as regras, não sei porque é assim, só sei que são.
– E isso de power play?
– Isso é a vantagem, quando um time recebe punições e os jogadores são penalizados a ficar fora dos jogos por alguns minutos, isso depende do tipo de punição, o outro time tem vantagem. Podem ficar até três contra cinco, sem contar com o goleiro.
– São expulsos, como no futebol. – Bekker concluiu.
– Não, não é como no futebol. – Brad sorriu balançando a cabeça. – Às vezes sim, podemos ser suspensos, mas não é assim. A gente só fica de fora por alguns minutos e depois voltamos. – Ele deu de ombros e Ava franziu a testa, confusa.
– Aí outra coisa que não faz sentido. – A terapeuta balançou a cabeça. – E isso de power play, era mais fácil dizer que é uma vantagem.
– Mas não teria a mesma graça. – Bradley se recostou mais uma vez a seu assento, sentindo-se invadido por uma onda incontestável de confiança. – Eu por exemplo, em relação a nós, prefiro usar power play a basicamente dizer vantagem.
– E nesse caso, quem estaria em power play? – Ava entrou no jogo, sentindo o coração acelerar com aquela fala.

Em momentos como aquele, Bradley Mäkelä parecia se divertir estreitando a distância entre eles, aproximando-se de modo preciso, permitindo que Bekker prestasse mais atenção a seus traços. Brad estava perigosamente perto e o perfume masculino e fresco do jogador tomava o olfato de Ava. Era possível ver com exatidão sua pele lisa, as sobrancelhas grossas, os olhos castanhos que de repente pareciam ter uma cor nunca vista antes e, Deus...como era difícil resistir a eles.

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20 de novembro de 2021, Lathi - Finlândia
Apartamento de Ava Bekker



Ava apertou o corpo de Brad contra o elevador, puxando os fios de cabelo da nuca do jogador, arranhando-o suavemente, enquanto beijava seu pescoço. Brad sorriu e em seguida segurou o rosto de Ava com uma das mãos, tornando a beijá-la, não tinha muita delicadeza, apenas sede e fome, estavam famintos. No segundo seguinte Ava tinha as mãos dentro do moletom e camisa que Mäkelä usava, a sensação da pele macia e quente do jogador, atrelado a rigidez do corpo definido e atlético dele era muito, muito animadora. Enquanto ainda estavam com os lábios unidos, as portas do elevador se abriram e, sem se preocupar com a possibilidade de algum transeunte no corredor, os dois saíram agarrados e ainda aos beijos. Fora vez de Brad apertar o corpo de Ava Bekker contra a parede com alguma pressa e beijar o pescoço da inglesa com voracidade, enquanto Ava suspirava, já ofegante.
Bradley era mais de vinte centímetros mais alto que a terapeuta inglesa, com isso, enquanto estavam se beijando ou quando os lábios rosados e macios de Brad estavam em seu pescoço, Bekker precisava ficar na ponta dos pés.

– Não repare...na bagunça. – Ela pediu enquanto tateava os bolsos e suspirava com o toque quente dos lábios de Mäkelä contra sua pele.
– Não...– Brad tentou falar, beijando a mandíbula de Ava, até que alcançasse sua boca. – estou preocupado.

Bekker se arrastou pela parede, ainda sendo pressionada pelo corpo grande de Bradley, que ora mantinha suas mãos na cintura dela, ora em sua nuca, imitando a ação anterior de Ava e puxando com cuidado os cabelos da terapeuta. Quando Ava enfim encontrou a porta, iniciou uma série de tentativas para abri-la.

– É que eu moro sozinha. – A terapeuta insistiu, quando finalmente conseguiu abrir as portas, puxando Bradley para dentro rapidamente.
– Meus olhos estão fechados. – Brad garantiu quando interrompeu o beijo para erguer Ava, que enlaçou a cintura do homem com suas pernas, enquanto Brad a beijava o pescoço e empurrava a porta com uma das pernas. – Onde?
– Bem ali. – Bekker apontou para trás de si, onde ficava a porta de seu quarto, depois de soltar o lábio inferior de Brad que estava preso entre seus dentes. – É que...você pode pensar que eu...eu sou uma pessoa...– Ava tentava dizer entre beijos, de forma ofegante.
– Ava Bekker. – Brad afastou-se rapidamente, interrompendo a inglesa. – Você poderia calar a boca? – Pediu, também ofegante, assim que alcançaram o quarto.

Ava, com a boca entreaberta, tentando respirar, assentiu e em seguida fora jogada sobre a cama, assistindo Brad arrancar o moletom pela cabeça com ajuda da mão boa e avançar sobre ela.
– Vai ser uma longa noite. – Ela ofegou.
– Pode apostar.

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