Prendi a bicicleta, ouvindo o tilintar do sino preso à porta quando entrei. O cheiro de café preencheu meus pulmões instantaneamente. Lá fora estava frio, e o calor da cafeteria era bem-vindo. Se fosse escolher uma palavra para descrever o lugar, seria "aconchegante". Helena estava preparando alguma coisa com chantilly em cima, e aproveitei para observá-la trabalhando.
Ela parecia tão à vontade ali, cercada da máquina de café, do moinho, das várias vidraçarias. Os cabelos escuros presos em um rabo de cavalo, as mãos habilidosas e a precisão dos movimentos. O sorriso fácil ao conversar com as pessoas que entravam e saíam.
Eu tinha inveja dela. Parecia tão fácil existir, viver, sorrir - pra mim nunca era fácil. Às vezes acho que nunca vai ser.
De repente, senti vontade de ir embora. Eu não deveria estar ali, poluindo o ambiente convidativo com minha nuvem escura de negatividade. Mas foi como se ela tivesse lido minha mente, porque se virou para mim.
- Pensando em fugir? - E ergueu a sobrancelha. O sino tocou, avisando que o cliente havia saído. - Nem precisa responder. Tá estampado na sua cara. Vem, senta aí - e apontou com o queixo para os bancos na frente do balcão, que ela limpava com uma flanela.
- Então, eu ia sentar numa das mesas... - falei, pondo as mãos nos bolsos. Cada mesa tinha uma pequena prateleira com livros ao lado. Helena me contou que havia sido sua ideia. Óbvio.
- Ué, por quê? Eu tô bem aqui.
- Exato. Não quero atrapalhar. - Insisti. Na minha cabeça fazia sentido.
Ela me lançou um olhar entediado. E, você sabe. A sobrancelha. E o piercing.
- Senta logo aí - obedeci, com uma carranca. - Viu? Nem doeu.
- Engraçadona.
- Sou mesmo - sorriu. Acho que sorri de volta. Estava tocando música num volume agradável. Tim Maia.
Não sei por que você se foi...
- Vou fazer um chocolate quente pra você. Por conta da casa.
- Não precisa - falei, com vergonha de repente. As pessoas nas mesas encarando me causavam um desconforto inexplicável.
Ela não parecia ligar.
- Cala a boca, Júlia. Vou fazer.
Não respondi, deixei que ela fizesse. Não adiantava discutir com a Helena. Ela sempre seria mais teimosa. Nunca sei se isso é bom ou ruim.
- Então... - ela começou, despejando a calda do chocolate na xícara - você me deve desculpas.
- Achei que já tivesse pedido.
- Não pra valer. Você só disse por dizer.
- Achei que era o que você queria ouvir. Pelo quê exatamente estou pedindo desculpas?
Ela me olhou.
- Você não sabe? - Neguei com a cabeça. - Cara, você passou, tipo, dias sem mal olhar pra mim direito! Depois quer agir como se nada tivesse acontecido e - ela fazia a bebida com destreza, mesmo com a atenção dividida - eu achei que tinha, sei lá, feito alguma coisa, ou que você tava passando por algo, mas eu não tenho bola de cristal pra adivinhar, sabia??
- Eu não sabia que te devia satisfação da minha vida - respondi, na defensiva. Minhas orelhas ardiam.
- Por que você faz questão de ser babaca quando precisa se abrir um pouco? Não vai te matar, sabe? Você não entra na vida das pessoas pra depois tratar elas feito lixo.
Novamente optei pelo silêncio.
Helena colocou o chocolate quente na minha frente. Havia o desenho de uma tulipa perfeita nele. Mordi a parte interna da bochecha.
- Vou deixar você com seu silêncio. Me liga quando aprender o significado de amizade. Tá bom? Eu não vou permitir que você fique descontando suas merdas em mim.
Ai. Não havia raiva em sua voz. Abri a boca, mas não consegui dizer nada. Eu queria pedir desculpa. Queria dizer que eu sentia muito, que não sabia falar sobre o que eu sentia. Queria dizer que eu não gosto de quem eu sou e que tenho medo de que ela também não goste. Mas só fiquei ali, com o chocolate.
Helena fingia que eu não estava ali. Por um lado isso me deixou aliviada. Por outro, me deixou... Não sei bem. Mas não era um sentimento bom, era angustiante.
Quando ela precisou ir para os fundos da loja, decidi ir embora. Mas antes, escrevi em um guardanapo.
"Me desculpa, Helena".
Olhei para o papel alguns instantes. Ao contrário da dela, minha caligrafia era horrível e desleixada.
Você não entra na vida das pessoas pra depois tratar elas feito lixo.
Amassei o guardanapo e fui embora.

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Depois Que Eu Te Conheci
RomanceJúlia Fernandes só quer saber de nadar e mais nada. Reservada, ela procura nunca se envolver demais com as pessoas, e essa personalidade apenas se solidificou depois que a mãe morreu em um acidente, o que dificultou a relação com o seu pai, que, ape...