No dia seguinte, acordei com tanta dor na garganta que precisei faltar à escola. Meu pai ligava a cada meia hora. Eu precisei insistir pra que ele fosse trabalhar, não precisava de uma babá me seguindo pela casa. E era assim que meu pai agia comigo doente. Eu ficava maluca e sufocada. Prometi me cuidar e o convenci a ir.
Resumindo, o dia estava sendo um saco. Tentei assistir alguma coisa na televisão, mas nada chegou realmente a despertar meu interesse. Me dava dor de cabeça. Reli alguns gibis da Turma da Mônica Jovem (que eu amo), mas logo fiquei entediada também.
Fui até o escritório do meu pai. Quando era criança, sempre entrava aqui. Ele estava sempre lendo. Livros e mais livros sobre o comportamento humano. Analisei sua escrivaninha. Tinha um rádio, cadernetas, uma xícara suja de café. Percebi um porta-retrato virado para baixo. Uma foto. Da minha mãe mais jovem. Se não fosse pelos olhos quase pretos que puxei do meu pai, olhar para ela seria como olhar no espelho.
Me pergunto se isso machuca o meu pai tanto quanto me machuca.
Saí de lá e fui até a varanda. Conseguia ver um pedaço da escola daqui. Então, contra a minha vontade, pensei em Helena. Será que ainda estava chateada comigo? Qual era o meu problema, afinal? Tudo o que ela fez foi ser legal comigo, então por que eu a ignoro ou afasto? Por que não consigo ser uma amiga decente?
Em um súbito sentimento de coragem, puxei o celular do bolso. Eu sabia que era a hora do intervalo e que ela estaria lendo.
"Oi", escrevi. Esperei, com os olhos grudados na mensagem. A foto de perfil que ela usava era da sua cadela, Luna, lambendo seu rosto. Na foto o dia estava ensolarado, refletindo à personalidade calorosa dela. Senti meu rosto ficar quente. Desde quando eu faço poesia?
A resposta veio alguns minutos depois.
"Por que não veio para a aula?"
Revirei os olhos. Sempre direta.
"Amanheci mal da garganta"
"Ahhhh", respondeu. "Melhoras."
Sorri.
"Valeu!"
Me joguei no sofá, aguardando enquanto ela digitava.
"Temos um trabalho de Língua Portuguesa pra semana que vem, de dupla."
"Hmmm"
Digitando...
"Você vai fazer com a Lisandra"
- QUÊ? - Gritei, me arrependendo no segundo seguinte ao sentir a dor cortante na garganta.
Levei um tempo pra me recuperar. Helena então iniciou uma ligação. Atendi.
- Estou brincando. Vamos ser eu e você - falou.
Me remexi desconfortável no sofá.
- Haha, muito engraçado.
Eu sabia que ela estava sorrindo por trás do celular.
- Você bem que mereceu.
- É - falei, envergonhada. - Me desculpe, Helena. Fui uma otária com você. Sou uma idiota.
- Você não é idiota. Nunca mais fale isso de si mesma - sua voz era tão suave, tão bondosa, que me dava vontade de chorar. Como ela podia ser desse jeito? Uma pessoa tão boa em meio a tanta gente ruim? E por que eu não consigo ser assim?
- Alô? - Respirei fundo. Não queria correr o risco de minha voz tremer.
- Achei que não era permitido o uso do celular na biblioteca - mudei de assunto.
- Ah. Não estou na biblioteca. Estou na piscina.
Franzi o cenho.
- Achei que você detestasse aí. Você chega aos treinos se arrastando. E olha que você nem nada.
Pude ouvir sua risada.
- Detestar é uma palavra muito forte. Eu achei estranho você ter faltado, pensei que pudesse ter gazeado a aula e vindo pra cá, mas...
- Mas eu não estava.
- É. Agora estou aqui, molhando os pés um pouco. A Lisandra está nadando. Me lançou um olhar cheio de opiniões quando me viu.
Soltei uma risada. Até sei de que olhar ela está falando.
- Ela é assim mesmo.
- Ela perguntou de você.
Me empertiguei.
- Quê?
- Sério. Achei estranho. Ela é uma babaca com você. Não gosto dela - eu ri, grata pela lealdade que Helena demonstrava sem esforço. - Perguntei por que eu saberia, e sabe o que ela disse? - Então limpou a garganta, tentando imitar a voz aguda da Lisandra, exagerando no tom afetado. - Porque você parece o cachorrinho dela, a seguindo por todo lugar.
Meu coração deu um salto. A imagem daquela interação nítida em minha mente. As palavras cheias de veneno da Lisandra sendo direcionadas a alguém tão ingênuo como a Helena. Por minha culpa. Me senti cheia de uma raiva que não sabia descrever. Ali estava. O lado feio que sempre tive e que não consigo esconder.
- Aquela filha da puta. Quem ela pensa que é? - Não reconheci minha própria voz quando disse aquilo. Minha vontade era de ir até a escola e desferir aquele soco de meses atrás que perdi a oportunidade de dar nela.
- Eu não ligo - Helena respondeu, a voz tranquila. Por alguma razão, sua calma me deixou com ainda mais raiva.
- Claro que você não liga - falei, a voz carregada de escárnio.
- O que você quer dizer com isso?
Hesitei em responder.
- Júlia.
- Nada. Só que você é boazinha demais, Helena - e eu não, completei mentalmente.
- E isso é uma coisa ruim?
Eu não tinha resposta pra essa pergunta.
Lisandra era uma cuzona, isso era fato. E merecia uma resposta à altura por dizer aquela merda. Uma resposta que alguém como eu daria, sem remorso. Mas eu queria que Helena fosse como eu?
Não, pensei imediatamente. Eu jamais iria querer isso. Que ela fosse alguém amargo. Eu gostava justamente do fato de ela não ser assim. Ela era diferente. A invejava justamente por isso. Acho que no fundo só não queria que ela tivesse escutado aquilo. Helena é doce e gentil com todo mundo. A escola inteira gostava dela. Ela não devia ter ouvido aquilo, ainda mais por minha causa.
- Não. - Foi o que respondi.
Não é uma coisa nem um pouco ruim.
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Depois Que Eu Te Conheci
RomansaJúlia Fernandes só quer saber de nadar e mais nada. Reservada, ela procura nunca se envolver demais com as pessoas, e essa personalidade apenas se solidificou depois que a mãe morreu em um acidente, o que dificultou a relação com o seu pai, que, ape...