Nove

8 1 0
                                    

Okay, aquilo era muito, muito estranho.

Nós não tínhamos uma terceira pessoa na mesa há um bom tempo, então o silêncio desconfortável era meio que compreensível.

Imagine a cena. Eu, numa ponta da mesa, meu pai na outra, e ninguém mais, ninguém menos do que Helena Rocha no meio. Imperturbável e completamente alheia à esquisitice da situação.

Limpei a garganta, meu pai limpou a dele. Nossa conversa silenciosa e compreensível apenas para nós dois.

"Fale alguma coisa."
"Não, fale você."
"A convidada é sua."
"Eu não a convidei!"
"Não interessa."
"Pai. Fale. Alguma. Coisa."

- Então - meu pai disse, um pouco alto demais. Ele parecia tão perdido e sem jeito. Sentiria pena se eu mesma também não estivesse. -, vocês têm, hum, um trabalho pra entregar?

- Isso aí - me apressei em responder. - Inclusive, vamos? Começar? - Me virei para Helena, alheia ao meu pânico inexplicável.

- Claro - deu de ombros. Ela simplesmente ligou para os pais avisando que não ia trabalhar porque vinha aqui fazer um trabalho (que eu nem sei do que se trata ainda!).

Tocou a campainha e cumprimentou meu pai com um "prazer em conhecê-lo, Sr. Fernandes". Acho que nunca vi meu pai gaguejar tanto.

- Podem ir. Eu cuido da louça. - Ele disse. Percebi que ele queria era nos expulsar da cozinha. A verdade é que, sem minha mãe, meu pai era um homem super tímido. Não o julgo por só atender adultos. Adolescentes são mesmo complicados.

Levantei da mesa e fui em direção as escadas, Helena logo atrás de mim. Só se ouvia nossos passos, mas meu coração estava prestes a sair pela boca. Me perguntei, por um instante, se ela conseguia escutá-lo.

Não sei exatamente como me sinto com alguém entrando em meu quarto. Ninguém, além dos meus pais, já entrou nele. Parece tão íntimo, tão pessoal. Não curto essa ideia. Não quero que ela conheça meu quarto e não quero conhecer o dela.

Limites. É isso. Amizades precisam de limites.

Estava enrolando para abrir a porta. Se Helena percebeu meu nervosismo, não disse nada a respeito. Só continuou ali, pacientemente parada.

Imperturbável. Essa palavra foi feita para descrevê-la.

Respirei fundo, a mão na maçaneta. É apenas um trabalho. Não seja dramática.

Abri a porta. Tudo bem. Não é como se fosse grande coisa.

- Com licença - ela disse, ao entrar.

Quis rir. Esquisitona educada.

Helena olhou o quarto de cima a baixo. Tudo parecia digno de atenção para ela. Fiquei parada feito uma estátua, sem saber o que fazer com as mãos. Talvez elas fiquem nos bolsos e talvez não e talvez cocem a nuca e talvez eu estrale os dedos e talvez eu só as deixe paradas e talvez

- Você tem várias medalhas - ela disse finalmente, debruçada sobre a prateleira.

- Hum. Sim. Sempre participei muito de competições e tal - falei. Observei enquanto ela amarrava os cabelos pretos no topo da cabeça. Me apressei em ligar o ar-condicionado. Estava mesmo fazendo calor.

- Você nada desde pequena? - Perguntou.

- É. Desde sempre. E ando de bicicleta, também, desde sempre.

- É por isso que você tem esse porte físico, mesmo comendo um monte de besteira - ela murmurou, mais para si mesma.

- Porte físico? - Gaguejei, confusa.

Havia um espelho na parede e nossos olhos se encontraram. Senti um tipo de queimação estranha na barriga. Nem precisava me encarar no espelho para constatar que eu estava vermelha. Minhas orelhas estavam pegando fogo.

Ela riu, se virando para mim.

- Sim, Júlia. Porte físico. Você tem um corpo bonito. O físico de uma verdadeira atleta.

- Ah - desviei os olhos, desconfortável. Eu queria que ela parasse de falar aquilo. Que parasse de fazer elogios desconexos sobre o meu corpo. Queria que não estivesse no meu quarto e não estivesse olhando pra mim.

- Você não sabe receber elogios, não é?

- É. Eu gostaria que você parasse de fazê-los. - Falei, seu riso foi um grande alívio para aquela estranheza. Soltei a respiração que não sabia estar prendendo.

- Não posso prometer isso. É muito radical. Você é alguém incrível.

Quis rir. Que mentira deslavada.

- Não vejo nada de incrível em mim.

- Você é. Só precisa se abrir mais para as pessoas. Deixá-las conhecerem você.

- Também não quero fazer isso.

- Pode começar comigo - sugeriu. Foi a gota d'água.

- A gente vai fazer o trabalho ou não?

- Está ficando brava?

- Muito.

- Tudo bem, vamos fazer o trabalho.

Passamos a maior parte do tempo caladas. Escrevendo e ouvindo música. Tínhamos o gosto musical parecido, e eu acabei descobrindo, ao ouvi-la cantarolando Nando Reis, que Helena tem uma bela voz. E fazia isso de forma espontânea, apenas por gostar da música.

Eu não tinha o hábito de cantar. Preferia apenas ouvir as músicas, provavelmente estragaria se tentasse. Então fiquei ali, apenas prestando atenção na voz dela. Na caligrafia caprichosa que ela tinha. Na maneira como ela mal pisca os olhos quando está lendo algo. No seu perfeccionismo. Em seus cílios longos e cabelos escuros. No piercing da sobrancelha. Na sua respiração lenta e tranquila. Escrevi menos do que ela. Fiquei mais responsável pela parte de pesquisa, encontrando com facilidade tudo o que precisávamos escrever.

O ar-condicionado estava com algum defeito. Marcava 18 graus, mas eu ainda estava suando.

Depois Que Eu Te ConheciOnde histórias criam vida. Descubra agora