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Os treinos estavam ficando cada vez mais intensos conforme as semanas passavam. Até Helena parecia mais compenetrada nas atividades como assistente do time, cronometrando nossos tempos e fazendo anotações. Eu havia pedido sem pensar, mas ela sem dúvida tinha sido a pessoa perfeita pra posição de assistente. Sua competência e comprometimento com o time era sem igual.

Temos um campeonato no fim do ano e ninguém quer perder logo nas eliminatórias. O time está mais focado do que nunca. Até o treinador Rafael parece ter perdido algumas horas de sono trabalhando em como nos deixar em perfeita forma pro final do mês.

Helena tem sido extremamente legal, me ajudando com os estudos para as provas e também ficando até mais tarde depois dos treinos. Para ser sincera, eu só queria nadar. Somos boas, então não estou realmente preocupada com as eliminatórias. Mas ultimamente tenho me sentido à flor da pele, e nadar tem sido minha única forma de não pensar demais.

Meu pai tenta ser próximo, mas sei que ele está travando suas próprias batalhas. A data de aniversário da mamãe está próxima e sei que vai ser difícil para ele. Eu não quero ser só mais um peso, então evito ir para casa logo. Seja treinando até mais tarde do que as outras nos dias de treino ou indo com Helena até o Cafélix.

Ela tentou me ensinar a vaporizar o leite, mas até agora ele está transbordando por toda a bancada ou ficando cheio de bolhas. Tem sido uma ótima forma de me distrair. Helena parece notar que existe algo me incomodando. Mas até agora não forçou diálogo nenhum sobre. Sou grata a ela. Grata por ser minha amiga, mesmo eu sendo tão... tão...

- Imbecil! Olha por onde você está nadando! - A voz de Lisandra me trouxe de volta. Ah, espere. Acabei de nadar na direção errada?

O treinador Rafael apitou.

- O que houve, Fernandes? Por que você anda tão distraída?

Ele está certo. Eu estou mesmo distraída ultimamente. Pulando antes ou depois do tempo na piscina, nadando devagar e atrasando as meninas, e agora (a pior de todas), saí da linha de marcação e esbarrei em Lisandra.

- Pra onde você quer nadar? Pros lados? - Ela me acordou de novo. Foi minha deixa. Tomei impulso e saí da piscina. O treinador pareceu meio perdido. Eu nunca havia simplesmente saído do treino, principalmente antes de ele acabar. Senti os olhos de todas em mim enquanto ia para o vestiário.

Entrei dentro do banheiro e, antes de fechar a porta, ouvi a voz abafada do treinador mandando todo mundo voltar ao treino.

Mudei de roupa e apoiei as mãos na pia, meus olhos vermelhos através do espelho. Você não vai chorar.

Abri a torneira e comecei a lavar o rosto, com força. Queria que as lágrimas fossem embora. Queria que tudo fosse embora.

A porta abriu e e fechou. Ótimo. Plateia.

- Ei - ergui os olhos e vi o reflexo de Helena.  - O treinador pediu pra eu ver como você estava.

Claro que pediu. Ele havia, como quase todo os adultos daqui, estudado com a minha mãe. E todo mundo da cidade sabia que ela estava morta.

- Estou bem - funguei, tentando ignorá-la.

- Você não vai me dizer o que está acontecendo, Júlia? - Ela veio até mim e tocou meu ombro. A sensação era insuportável.

- Não quero que você me toque.

Ela recolheu a mão e então me virei para ela. Já não conseguia mais controlar as lágrimas, elas escorriam livremente pelo meu rosto. Estava cansada de tudo. De ter que aguentar esse peso. Estava cansada de fingir.

- Você pode me contar - sussurrou. - Eu posso não conseguir ajudar, mas pelo menos posso te ouvir. Você não precisa me afastar. Sei que tem algo acontecendo, você tem evitado ir pra casa e anda tão distraída de tudo. Vejo em seus olhos sempre que estamos juntas que tem algo te machucando.

Seus olhos tinham tanta ternura. Eu não merecia essa ternura. Mas a queria. Deus, eu queria tanto. Ela chegou mais perto, devagar, e abriu os braços.

- Posso?

Suspirei, mas não disse nada, apenas assenti. Então seus braços me puxaram e eu deixei que ela me acolhesse. Ela era mais baixa, então me inclinei para encaixar em seu abraço.

Era tão confortável. Me fez chorar ainda mais. Me sentia um rio de fluxo incontrolável, manchando sua roupa. Encaixei o rosto em seu pescoço e suspirei, seu perfume suave me atingindo em cheio. Então, relutante, finalmente fechei meus braços ao seu redor.

Não sei quanto tempo ficamos dessa forma, mas não fazia diferença, porque não parecia suficiente. Doía por não ser o suficiente. Me sentia egoísta, porque não queria soltar nunca mais.

Quando não havia mais lágrimas, decidi que era hora de falar.

- Minha mãe... - minha voz saiu trêmula. Eu me sentia trêmula. - O aniversário dela está próximo... E acho que não vou aguentar, Helena. Acho que não vou. - Foi como se uma corda tivesse sido puxada do meu peito. O alívio por falar aquilo se apoderando de mim aos poucos.

Helena não disse nada de imediato. Apenas apertou os braços ao redor de mim. Tão bom.

- Júlia... Sinto muito. Sinto muito, muito, mesmo. Eu queria poder tirar essa dor de você.

Mais lágrimas. De onde elas vêm, que não acabam? Vou acabar ficando desidratada se continuar assim.

- Eu não consigo... não consigo... - minha voz se quebrou.

- Shhh... Tudo bem. Tudo bem. Você não tem que conseguir tudo sozinha. Você tem a mim, tem seu pai, que te ama demais e se importa muito com você.

- Você está enganada. Ele não liga. Ele está preso demais no próprio sofrimento. Ele não me vê de verdade, Helena - estava começando a suar. Mas não queria soltá-la.

- Você também está sofrendo. Vocês precisam um do outro. Só vocês são capazes de entender a dor que o outro está sentindo. Tente conversar com ele.

- Não sei conversar.

Ela levantou a cabeça do meu ombro, sem soltar do abraço, e me olhou nos olhos.

- É o que estamos fazendo agora, não estamos? Demorou, mas você finalmente conseguiu. Você não precisa esperar esses sentimentos explodirem pra falar com ele. Você não pode sufocar tudo isso aí dentro e agir como se estivesse tudo bem, você vai adoecer assim.

- Tenho medo - nunca havia dito isso na minha vida. Pra ninguém. Só me dei conta de que era verdade ao dizer.

- Tudo bem ter medo. Talvez ele também tenha. Talvez por isso não consiga conversar sobre isso com você. Mas não dá pra ficar empurrando isso com a barriga pra sempre, Júlia.

Funguei. Meu Deus, como eu odeio que ela esteja sempre certa.

- Você tem razão.

- Eu sempre tenho.

Ri, chorosa. Essa garota era sempre capaz de me fazer rir.

Mas ela tinha razão, mesmo. Eu precisava falar com ele. Poderíamos passar por isso juntos.

Depois Que Eu Te ConheciOnde histórias criam vida. Descubra agora