46 | contra o tempo.

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A poltrona do consultório de Anne não é tão confortável quanto aparenta ser. Além do estofado não ser dos melhores para alguém que fique sentado nela por mais de uma hora, como eu, as cinco rodinhas podem ser um parque de diversões para um ansioso. E esse, com toda certeza, também sou eu. Não sou o tipo de pessoa que consegue colocar tudo aquilo que sente para fora com muita facilidade, tanto que até desvia de consultórios psicológicos. Sou o cara que aprendeu desde cedo a lidar com as próprias emoções - ou, pelo menos, fingir. Isso era o que eu mais me via em Gigi.

Logo nas nossas primeiras conversas, eu pude ver que ela engolia os sentimentos mais intensos e obscuros, transformando-se em um poço de aflições que poderia explodir a qualquer momento e caso isso chegasse a acontecer, não iria ser uma cena nada legal. É a mesma situação que a minha. Eu me conheço e as minhas memórias são a confirmação de que eu posso ser bem ruim, não só com os outros, mas principalmente comigo. Não é bonito a acumulação e a escuridão que cresceu no meu peito e a dor pode não ser clara, mas ainda está aqui e não sei se um psicólogo pode mudar isso.

Eu não toquei no café que a recepcionista trouxe, nem estou fazendo muita questão de estar sendo atendido pela melhor amiga da minha namorada, por mais irônico que isso possa parecer, e Anne já percebeu e mesmo assim faz questão de mostrar um sorriso meigo depois de beber uma última vez à bebida quente da caneca amarela, combinando com o esmalte azul das unhas: - Não quero forçar a barra, mas o que aconteceu entre você e Gigi?

- Quer que eu responda, assim, direto? - ela assentiu, como se já estivesse óbvio. - Foi mal, Anne, mas eu não vou dizer nada específico e nem dizer os detalhes. É mais íntimo do que parece.

A gente pode até ter uma certa familiaridade devido a convivência direta em casa, mas ela não vai conseguir que eu conte as merdas que estão acontecendo na minha vida pessoal. Não contei nem para a Gigi, a mulher que eu amo e mãe da minha filha, Anne não vai ter tanta sorte comigo. Ela franziu os lábios, mas concordou.

- Eu não estou duvidando da sua palavra, Olly, apenas quero saber os fatos para poder te ajudar da melhor forma. Não me veja como a Dra. Bryant, mas sim como a Anne, a amiga de vocês. - ela fez um manejo de cabeça, esperando a minha compreensão. Eu dei de ombros. - Há algo que te traga arrependimentos? Alguma coisa que te deixe arrependido no namoro com a Gigi?

Eu a encarei. Ela perguntou isso mesmo?

- Não acredito que você me fez essa pergunta.

- Você não me respondeu. Há arrependimentos?

A luz do sol surgiu através das persianas, depois que uma nuvem o deu passagem. A selva de prédios estava seguindo em frente naquele momento, como todas as outras pessoas trilhando o caminho de suas vidas caóticas e eu, ao invés de fazer o mesmo, estou tendo e ouvindo uma conversa monótona. Será que ela esqueceu que eu tenho afazeres? Ela cruzou os dedos, esperando.

- Óbvio que eu amo a minha filha, amo a mãe dela e amo o que nós dois construímos até agora. Elas são tudo que eu mais tenho de precioso. - respondi, indo com a cadeira giratória mais para trás e depois mais para frente, de volta. Eu disse que faria isso uma hora, afinal sou ansioso. - Não me arrependo de nada.

Anne sorriu, de leve, inclinando a cabeça para o lado.

- E por que aparecem tantos erros nesse amor incondicional?

Nós não éramos perfeitos, nunca fomos e estamos muito longe de sermos algum dia, mas éramos como duas metades de algo maior. Sei que parece clichê pra caralho e que essa frase pode aparecer em qualquer filme bobo de romance. Talvez esteja lançando algum, exatamente, desse jeito nos cinemas do shopping, porém, é a verdade entre mim e Gigi. Quando juntos, nós dois estávamos completos. E não preciso ouvir tais palavras saírem da boca dela para saber que ela sente o mesmo que eu, pois através do seu olhar perdido e inegavelmente enérgico, eu via o reflexo de que a minha garota se via completa ao meu lado, assim como eu.

ᴍᴇ, ʏᴏᴜ ᴀɴᴅ ᴏᴜʀ ʟᴏᴠᴇʀs (3)Onde histórias criam vida. Descubra agora