31 | o artigo.

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Anne não está bem. Ela não está nada bem. Fiquei grande parte do dia fora de casa, pois ela havia me pedido para que lhe desse um tempo para descansar a cabeça depois do que aconteceu naquela consulta misteriosa. E por pensar que isso iria ajudá-la, eu aceitei e fui levar o Enrico até a escola. No entanto, a cena que encontrei ao chegar em casa está bem longe de ser o que eu esperava ver vindo dela. Anne não estava nenhum pouquinho feliz ou tentando processar tantas informações dolorosas para recomeçar do zero, e sim em nossa banheira, com os olhos inchados de tanto chorar.

Sei que não há uma maneira milagrosa de trazê-la de volta ao que foi um dia e se isso existisse, eu seria o primeiro cara a tentar conseguir para ela em primeira mão, entretanto eu posso e tenho inúmeras chances de ajudá-la. Hoje mais cedo eu poderia ter sido um pouco mais teimoso, negado seu pedido de espaço e ficado ao lado dela pelo resto da tarde, talvez assim ela estivesse melhor. Gigi e Amy também estiveram aqui e mesmo assim não puderam trazer alegria para a minha garota, e isso é mais que frustrante.

Quando saímos da banheira, depois que a água já havia esfriado há um tempo e os sais de banho não terem mais efeito, não sai de perto dela nem por um segundo sequer. A levei até o nosso quarto, lhe aconselhando para que se cobrisse do frio, enquanto eu preparava um chocolate quente para nós dois e ela poderia escolher o filme que quisesse. Nós dois reaassistimos aos episódios de Anne Com E, sua série preferida, a qual eu admito ser uma das melhores do catálogo Netflix. Eu a abracei junto do meu corpo, me certificando de que ela estava segura e a vi dormir após algumas horas. No mais que isso, eu não consegui dormir.

Tive medo de que eu acabasse pegando no sono e ela acabasse precisando de mim. Se eu me descuidasse dela outra vez, nunca iria me perdoar. Enrico, aquele carinha de somente nove anos, me disse aquele dia que os homens bons não mentem aos irmãos só porque eles são menores e não deixam a garota que ama sofrer. Até agora, cumpri apenas a parte de não mentir para ele, o restante estou fazendo de tudo para efetivar. Entre as faltas de sono, lembrei de um artigo que preciso começar a escrever.

Eu poderia trazer o meu laptop para o quarto, mas desse jeito posso acabar acordando ela e não quero tirar dela um dos seus únicos momentos de descanso depois de tanto sofrer. Seria egoísmo demais da minha parte. Tomando cuidado, levantei da cama e fui para o nosso escritório, me trancando no cômodo. Esse artigo teria que ser entregue até o fim deste mês, então preciso correr contra o prazo antes que seja tarde; dessa vez, luto será o tema abordado. Um dos nossos acionistas há muitos anos no jornal, faleceu recentemente, sensibilizando a todos pela perda.

E, o meu supervisor, sabendo que eu sou o cara que escreve os tais artigos sensíveis, me reivindicou para escrever um texto sobre o falecimento e o trabalho eficaz desse senhor. Ele não sabe que escolheu a pessoa certa para falar sobre o assunto, nem que eu perdi o meu pai e desde então, convivo com esse sentimento instaurado dentro de mim. Já tinha em mente um breve resumo do que seria escrito e ao meu ver aquele artigo poderia ficar pronto naquela mesma noite, entretanto quando comecei a digitar e dizer que eu já senti essa dor tremenda, nada parecia ter sentido. Foi como se uma peça do quebra-cabeças estivesse faltando e então prejudicando as restantes. O que está acontecendo com esse texto?

Por que não está fluindo como os outros? E justamente sendo um tema que eu mais estou acostumado? Só deve ser um bloqueio criativo começando, mas cacete, tinha que ser agora? Tenho um prazo para entregar e preciso ser ágil. Buscando por inspiração de qualquer meio, pesquisei por outros artigos daquele assunto de outros jornais e editoras, os li várias vezes, até poder perceber um mísero detalhe: todos descreviam a razão do falecimento do ente citado, como exemplo, tendo as provas de autópsias da morte.

Benjamin, o meu pai, morreu devido a um acidente de carro ao voltar para casa depois de servir a um plantão médico no hospital. Naquela noite, estava chovendo e o veículo derrapou devido a chuva e capotou. Lembro de que eu estava em uma festa, fazendo merda de novo, quando minha mãe recebeu a notícia e aguentou o trampo sozinha. Somente sei que o carro capotou, se tratando de um terrível acidente de trânsito, mas por pensar nisso, eu nunca de fato cheguei a ver o laudo médico do legista. Ouvia a minha mãe conversando entre as lágrimas com a minha avó, mas nunca vi ou soube de nada. Ok, ok. É melhor ir atrás disso antes de começar a escrever, não posso dar início tendo pouca explicação do ocorrido.

ᴍᴇ, ʏᴏᴜ ᴀɴᴅ ᴏᴜʀ ʟᴏᴠᴇʀs (3)Onde histórias criam vida. Descubra agora