Capítulo 20 - Tudo às claras

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Ana Reyes:

Refaço o laço do vestido, envergonhada por não ter percebido antes o meu descuido. Miguel e Lucca conversam entre si, o que me dá um tempo para observá-los discretamente. Meses atrás eu os admirava por serem grandes médicos e professores e agora estava conhecendo uma parte inteiramente nova de suas vidas.

— Professores. - Chamo a atenção dos homens, me endireitando no sofá para iniciarmos nossa conversa. — Acho que temos bastante coisa para conversar e talvez seja legal eu começar. - Eles acenam com a cabeça, sentando juntos à minha frente.

Resolvo ser o mais franca que posso, pois agora não se tratava apenas de nossa convivência, mas de uma ligação inesperada que eu compartilhava com Larinha. Iniciei contando o motivo pelo qual saí da faculdade: não era gravidez e sim a morte de meu pai e hospitalização de mamãe. Não entrei em detalhes, pois não queria pesar o ambiente, então resumi o necessário.

Relatei os meus diferentes trabalhos para quitar as dívidas e que, quando não foi suficiente, aceitei ser garçonete na boate. Reafirmei que desconhecia a podridão daquele velho, alegando que, se soubesse, teria arranjado quatro empregos só para não precisar compactuar com aquilo. Nessa hora vejo uma pontada de culpa transpassar a feição dos dois homens.

— Não me entendam mal, acho que cada pessoa tem o direito de fazer o que quiser em seu relacionamento e com o seu corpo, contudo deve ser algo que todos queiram. - Abaixo a cabeça e reúno coragem para dizer: —  Podem achar que sou ultrapassada, mas acredito que amor e sexo estão relacionados e não é algo que pode ser vendido em um menu como um pedaço de carne.

Sinto minhas bochechas corarem nessa hora, pois talvez esteja me expondo mais do que o necessário. Percebo que Lucca vai dizer algo, mas coloco uma mão em seu joelho, pedindo que não o faça.

— Não estou aqui para julgar vocês, embora depois acredito que irão me explicar sobre seu relacionamento. Por ora, só deixe eu terminar minha história. - Retiro a mão de seu corpo quando ele se afasta um pouco, dando as mãos à Miguel.

Explico sobre minha lactação e que há anos sou doadora de leite para o hospital. Quando era adolescente minha glândula mamária começou a produzir o líquido, passei por dois médicos diferentes, um achou que tinha sido um trauma o responsável por isso, outro pensou que fosse um distúrbio hormonal. Nunca descobrimos exatamente a causa, pois meus exames são normais e o meu leite é muito saudável.

No começo foi estranho, tinha que explicar pras minhas colegas de escola que eu não era mãe, apenas lactava. Enquanto os médicos chamavam de milagre, eu chamava de maldição. Tudo mudou quando minha mãe me levou no hospital para ser doadora pela primeira vez. Quando vi uma criança tomar o líquido da garrafinha que eu havia enchido, entendi o quão maravilhosa era a oportunidade de alimentar uma vida.

— Acho que esse foi um dos motivos para eu querer fazer medicina. Desde cedo quis entender como funciona nosso corpo e o quão incrível ele pode ser. Sem contar que como médica poderia ajudar as crianças de outras formas. - Volto a olhar para meus ouvintes, percebendo um sorriso se formar em seus rostos.

— Você é incrível, sabia? - Sou pega desprevenida pelo comentário de Lucca, que me dá um beijo na testa. — Estou feliz por você ter entrado em nossas vidas, a Larinha terá a melhor babá possível.

Não sei o que responder, muito menos como reagir a sua mão que acaricia com delicadeza o meu rosto. Ele parece perceber o gesto, interrompendo o contato de nossos corpos. Miguel sorri para nós, se divertindo com o momento de afeto repentino e, principalmente, com nossa timidez após o ato.

— Será bom ter você conosco, Ana. - Miguel quebra o silêncio. — Só gostaria que nos chamasse pelo nome, ao invés de professores. - Rio junto com ele, concordando com a cabeça — Quando mamãe comentou sobre a vinda de uma babá, meu maior medo foi como seria a adaptação com nossa filha. Mas agora não me preocupo mais, tenho certeza que ela se sentirá segura com você. A questão é se você se sentirá segura conosco, dado que nossos encontros anteriores não criaram o melhor histórico…

— Ana, sei que na boate foi uma confusão, mas saiba que nunca faríamos nada contra sua vontade. - Lucca usa um tom sério, tentando esclarecer os maus entendidos entre nós. — Eu e Miguel estamos juntos há anos, fomos criados como irmãos pela dona Olívia, mas acabamos nos apaixonando. A Lara foi um presente que não imaginávamos.

— Estávamos de plantão no dia em que a Luara deu entrada no hospital. - Miguel toca com carinho o parceiro. — Ela era muito nova e sofria abusos físicos. Tentamos achar sua família, mas ela era órfã e vivia de favor em diferentes casas. Ninguém veio reclamar a paternidade de sua filha, então nós adotamos a pequena. Foi um processo que só as pessoas que participaram do parto ficaram sabendo, além do jurídico do hospital que nos auxiliou em tudo.

— Eu que encontrei a Luara quase desmaiada em uma rua próxima do hospital, estava voltando de um intervalo. - Percebi os olhos de Lucca se enxerem de lágrimas. — Ainda lembro dela colocar a mão na barriga e pedir para que eu salvasse e protegesse a sua Lara. Talvez, se eu tivesse a encontrado antes poderia ter a salvado.

— Nós fizemos o possível, meu amor. E quando Lara crescer iremos falar que a mãezinha dela era uma menina corajosa, que foi, mesmo com dores e sozinha, andando até o hospital para salvar a nossa princesinha e apresentá-la a nós.

Nesse momento eu desabo. Sinto meu rosto ficar úmido. Os dois homens me encaram, compartilhando um sentimento ainda mais intenso que o meu. Cada um estende uma mão para mim e eu entrelaço nossos dedos. Falo em voz alta, decidida: "Cuidarei de Lara com todo carinho que eu puder dar e ela aceitar receber."

— Espero que isso valha para leite também, nossa menina é muito esfomeada. - Miguel comenta, transformando minhas lágrimas em riso.


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Capítulo finalizado 🌈

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