Capítulo 2: Bem-Vindos a bordo

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As ruas estavam paralisadas, não havia movimento de carros; Todos buscavam abrigo. O resfriamento afetou as casas, prédios, arvores, animais, ricos e pobres. Alguns poucos, assim como nós, vagavam pelas ruas. Mas, pareciam perdidos, sem rumo. Pensei em avisa-los sobre o trem- arca, mas dificilmente me dariam ouvidos.

Fiquei olhando a neve cair por alguns instantes —Nunca havia visto neve no Rio de Janeiro. Mas, ao ver que o solitário termômetro de rua marcava zero graus célsius, continuei minha jornada rumo à estação Niterói.

Tivemos de ir à pé, os carros estacionados na rua nunca ligariam a essa temperatura, a menos que já estivessem em movimento. Havia cerca de dez centímetros de neve no chão, e João e eu estávamos apenas com nossos uniformes de jardineiro. O vento frio cortava a garganta, foi muito difícil percorrer quase 3 quilômetros até a estação, a única coisa que nos motivou era saber que não teríamos outra chance. Mas o pior ainda estaria por vir.

Estávamos a poucos metros da estação, e para minha surpresa uma grande multidão se esforçava desesperadamente para derrubar a enorme cerca elétrica, que circundava a estação, resguardando o grande comboio.

Aparentemente, hoje em dia, com o avanço da internet e hackers, até mesmo informações secretas como o Trem do fim do mundo, ficam expostas em fóruns virtuais aos olhos de todos os curiosos que buscavam freneticamente por uma salvação.

Me aproximei da cerca para ver melhor o que elas protegiam e me surpreendi com o que havia lá! Uma enorme locomotiva, sua altura era comparável aos edifícios ao entorno; um grande holofote instalado no topo da locomotiva iluminava os trilhos congelados a frente e suas incontáveis rodas cada uma muito maior do que uma pessoa rangiam prestes a partir. Todos os vagões atrás dela iluminavam o ambiente, e se perdiam no horizonte, parecia uma infinidade de aço. –uma fortaleza de ferro imparável, destinada a todos aqueles que pagaram fortunas para embarcar em um trem sem destino definido.

Ao lado da grande locomotiva, uma forte escolta armada garantia a ordem. Eles olhavam fixamente para a multidão que tentava invadir o complexo, enquanto os ricos saiam calmamente de suas limusines para embarcar na arca.

O que mais me tocava era o olhar daqueles passageiros. Eles não pareciam se importar com todos aqueles que seriam deixados para trás. Não era como se o mundo estivesse acabando, pois estavam certos de que suas fortunas os salvariam. Eles entravam em fila, um a um, e atrás, funcionários carregavam seus pertences: quadros, vasos, malas, moveis, roupas, alguns levaram também seus animais de estimação.

Vi uma garotinha sair da limusine, ela carregava em seus braços um cachorrinho, todo agasalhado para resistir ao frio. Olhou para trás e nos viu, seus olhos lacrimejaram, ela sentiu empatia por nós, mas sua mãe logo a repreendeu tampando seus olhos, para que não visse nosso desespero.

Finalmente, de um dos carros, saiu a senhora Martínez, aquela senhora do prédio onde trabalho. Ela olhou para mim por alguns segundos, mas, logo seguiu para o embarque com aquele olhar de desprezo.

Alguns vagões atrás, outros funcionários, todos com o logotipo das Industrias Nylton em seus uniformes, (o mesmo N que vi no envelope), traziam os animais para a arca. Vacas, galinhas, porcos, e vários outros embarcavam em gaiolas. Pareciam os animais entrando na arca de Noé para sobreviverem ao apocalipse.

O silencio e a ordem do embarque, que funcionava como a sincronia de um relógio, foi quebrado quando parte da cerca de proteção foi rompida pela multidão.

Nesse momento, finalmente me dei conta da situação em que estava. Um grande tumulto tomou conta da estação Niterói, e os privilegiados que embarcavam calmamente na gigante fortaleza de aço, agora corriam para o interior da máquina, assim como nós, temendo um confronto destrutivo.

Centenas de pessoas corriam ao meu lado, sem plano, sem estratégia, sem nada a perder. Apenas corriam por suas vidas. Enfrentando a todo custo a força armada que protegia a porta de entrada do majestoso trem.

Corríamos atordoados, com explosões colossais ao lado, guardas defendiam o acesso com todas as forças e armas que estivessem a disposição. Corri com todas as minhas forças em direção a porta de acesso, que iluminada, parecia uma porta de esperança, destacando-se do resto do vagão, ao mesmo tempo que João e eu desviávamos da mira dos guardas. Embora o número dos clandestinos fosse muito maior do que o de militares, o simples fato de estarem armados, tornou nossa tentativa de entrar no trem um grande desafio para todos e nosso número diminuía à medida que nos aproximávamos da arca sobre trilhos.

Uma voz fria ressoou na estação, provinda do interior do trem:

—atenção todos os passageiros! Devido a violação de perímetro, iremos antecipar a partida. O Expresso Frostcruiser partirá em menos de um minuto. Embarque imediato!

O desespero tomou conta de todos, ainda mais do antes, não só para os clandestinos, como também para os passageiros com bilhete de embarque, quando uma contagem regressiva nos preparava para a partida:

— atenção passageiros, o Expresso Frostcruiser partirá em 10... 9... 8...

Driblando os guardas, me joguei dentro do vagão enquanto a contagem diminuía...

—...3...2...1... Iniciando a locomotiva!

De repente, senti o chão abaixo dos meus pés tremer; primeiro devagar, aumentou gradativamente e reduziu de novo, enquanto a porta do vagão se fechava aos poucos. João olhou para mim em pânico, correndo e se esticando para tocar minha mão, enquanto o trem se distanciava dele.

Vi o olhar desesperançoso das pessoas que estavam mais longe, vendo sua única esperança ir embora. Eles correram um pouco, mas pararam quando perceberam que o trem acelerava.

Enquanto a imensa locomotiva quebrava o gelo a frente, iluminada pelo holofote que refletia nos flocos de neve lançados no ar pela força do limpa-neves, aos poucos, a infinidade de vagões, dez mil e um ao todo, começavam a correr pelos trilhos.

Finalmente, a porta se fechou completamente, nos resguardando do deserto de gelo.

O Expresso Frostcruiser partiu, deixando para trás o mundo congelado. O trem percorria a toda velocidade seu percurso de uma ponta a outra da Terra sem destino definido. Seu destino, talvez, fosse um mundo distante, onde a vida possa se recuperar. Ou talvez, apenas uma viajem perpétua, mantendo a todo custo a última fagulha da civilização; do que um dia já foi a humanidade.

Quando o vagão foi trancado, eu simplesmente não sabia o que esperar nesse novo mundo. Mundo esse, que não passa de uma caixa de metal sobre veios de aço em uma esfera congelada.

Trilhando uma tênue linha entre a resistência e a desesperança, segue o Frostcruiser, um expresso do fim do mundo, com seus dez mil e um vagões, rumo ao nada.

Frostcruiser: - O Expresso Fim do MundoOnde histórias criam vida. Descubra agora